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Qual a diferença entre o senso comum e o conhecimento científico?

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Fonte: Shutterstock.

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Convite ao estudo  

Caro aluno,

Observe o quanto o mundo real é baseado em dois principais pilares: ciência e tecnologia. Hoje, mais do que em outras épocas, a relação desses dois campos proporcionou inovação global e facilidade de acesso à informação.

A inovação contribuiu para o rápido progresso tecnológico da sociedade, principalmente com a automatização provocada pelo uso de Inteligência Artificial, e o acesso à informação aumentou com a ascensão da Internet. Os mecanismos de buscas das grandes empresas, como o Google e o Bing, unificaram esses dois elementos e, com base em algoritmos cada vez mais refinados, proporcionaram a emergência de anúncios e resultados de buscas cada vez mais personalizados de acordo com os dados de acessos dos usuários. No entanto, o rápido progresso tecnológico não preparou cognitivamente a população para a avaliação crítica das informações recebidas nos meios digitais com acesso à Internet.

Atualmente, em todo o mundo, enfrentamos o problema da fake news, que é um conceito em inglês para designar notícia falsa. A fake news atinge todos os setores da atividade humana, trazendo sempre algum dano real, como a consequência dos boatos do movimento antivacina, que contribuíram para que doenças até então erradicas no Brasil, como a febre amarela, voltassem à tona.

A fake news se aproveita da falta de entendimento do grande público sobre o que é conhecimento e como avaliá-lo. Dessa forma, o indivíduo-alvo acaba não tendo o fundamento e as ferramentas necessárias para identificar o quão real é a informação recebida.

Ao decorrer do livro, você será capaz não apenas de entender os diversos tipos de conhecimentos, mas também de identificar um tipo peculiar de crença psicológica que finge ser científica, geralmente sustentando narrativas fantasiosas ou sensacionalistas.

O resultado será a compreensão da atividade científica, da importância de sua aplicação na vida cotidiana e do impacto que o falso conhecimento, elemento de estrutura das fake news, provoca na sociedade contemporânea.

Praticar para aprender

Você já precisou procurar alguma informação para a realização de um trabalho? É muito provável que sim. Qual o principal meio de busca para encontrar a resposta que você precisa? Provavelmente, você responderá Google, Bing ou algum outro site de pesquisas online. Diferentemente, nas gerações anteriores ao surgimento e popularização da Internet, as buscas eram realizadas através de bibliotecas, livros, sumarizações e enciclopédias. 

A Era da Informação trouxe uma enorme facilidade, no sentido de praticidade, do encontro de informações. No entanto, com o excesso de informações, é possível que não tenhamos acesso a algo verídico. Portanto, será necessário questionar: “As primeiras respostas do Google realmente são o conhecimento mais coerente frente à realidade?”

Com o advento do mundo contemporâneo, o indivíduo que tem um conhecimento sólido em sua prática profissional é muito valorizado, mesmo sendo preciso que ele esteja disponível para aprender e atualizar sua formação profissional, exigindo cada vez mais uma busca por conhecimentos mais avançados em sua área de atuação.

Pensar cientificamente é uma ótima maneira para garantir uma progressão de aprendizado, autocorreção e adaptação conforme a necessidade. Sendo assim, o profissional cientificamente orientado pensará nos meios de maximizar sua produtividade, levando em conta os impactos que o trabalho excessivo poderia causar em seu estado de saúde e, ao mesmo tempo, proporcionando maior capacidade de gestão na organização de tarefas em equipe.

Em uma sala de aula, quatro estudantes são desafiados pelo professor de Filosofia a responderem a três questões, que são recorrentes ao longo da história da humanidade. 

  1. De onde viemos?
  2. Para onde vamos após a morte?
  3. Por que estamos aqui?

Cada aluno, em seu modus operandi, adota uma postura diferente em relação às respostas. Um vê o mundo a partir do (A) conhecimento científico; outro, do (B) religioso; o seguinte, do (C) filosófico e, por fim, o último, através do (D) senso comum. Diante dessa situação, a resposta de cada um é:

Aluno A: Tudo se iniciou no Big Bang, e através de um processo de evolução por meio da seleção natural. Após a morte, nossa consciência não mais existe. Não há nenhum propósito especial, com base no que conhecemos através da ciência.

Aluno B: Deus criou o Céu e a Terra tal qual está escrito na Bíblia. Para o paraíso ou inferno. Para atender aos desígnios de Deus.

Aluno C: Qual é a origem do Universo? Qual é a melhor teoria científica? Podemos advogar pela defesa do Big Bang? É necessário submeter ao escrutínio da filosofia analítica a análise semântica das teorias científicas. Do mesmo modo, é necessário clarificar o conceito de morte, olhando pelas implicações do conhecimento científico. Essa pergunta traz problemas de ordem metafísica, portanto, é necessário analisar o significado do conceito de propósito.

Aluno D: Depende do contexto. Um indiano, provavelmente, responderia com base em suas crenças culturais regionais, manifestando explicações de caráter hinduísta. Se fosse um japonês, provavelmente advogaria pelo zen budismo. Um brasileiro responderia conforme as crenças compartilhadas de sua região, por exemplo, existem regiões no Brasil onde há prevalência de mitos da origem da vida e do universo que têm uma relação intrínseca com crenças religiosas africanas, enquanto outras são fortemente influenciadas pelo catolicismo europeu. Nesse sentido, como foi explicado no texto, o conhecimento popular absorve sempre aspectos de outros conhecimentos quando incorporados fortemente pela cultura.

Nessa interação, percebemos que cada aluno apresenta sua perspectiva pessoal frente às três grandes questões. Assim, recomenda-se instigá-los sobre as possíveis consequências das adoções de certos tipos de conhecimento e crenças para os desafios de sua vida diária e do mundo contemporâneo, tratando de fazê-los responder qual o melhor tipo de conhecimento para uma situação específica e como conciliá-lo com outros. Por exemplo, como a adoção de uma crença oriunda do conhecimento religioso poderia impactar em questões de saúde individual e coletiva? Qual consequência o conhecimento vulgar, aquele de senso comum, traria para a sociedade ao enriquecer mais rapidamente do conhecimento científico? A absorção do conhecimento científico, tanto no âmbito individual como coletivo, nos tornaria melhores tomadores de decisão? Essas questões, consequentemente, reforçariam a existência de diferentes tipos de conhecimentos no âmbito da vida cotidiana e fomentariam o pensamento crítico dos alunos.

Saber muito não lhe torna inteligente. A inteligência se traduz na forma que você recolhe, julga, maneja e, sobretudo, onde e como aplica esta informação.

Carl Sagan, trecho do documentário Cosmos (1980).

conceito-chave

Doxa, o conhecimento vulgar da sociedade

Desde Aristóteles, o conceito de conhecimento tem sido central no debate filosófico. Inicialmente, conhecimento era tratado como um tipo de crença racional, verdadeira e justificada. Crença, porque faria relação com um estado psicológico do sujeito; racional, porque envolveria o exercício de nossas faculdades cognitivas; verdadeira, porque faria alusão a objetos ou fenômenos da realidade; e, principalmente, justificada, porque requereria um conjunto de enunciados estruturados logicamente. Essa definição, porém, não dá conta dos diversos tipos de conhecimentos existentes, alguns dos quais serão tratados ao longo do livro.

Para começar nossa jornada, vamos entender um pouco o conceito de conhecimento vulgar, também chamado senso comum ou saber popular. Etimologicamente, refere-se ao conceito aristotélico de doxa, ou simplesmente opinião.

O conhecimento vulgar trata-se de um conhecimento que não quer nenhum tipo de exercício crítico, também não envolve nenhum tipo de verificação experimental. Geralmente, ele é transmitido culturalmente, de gerações a gerações, muitas vezes preservando mitos que eram aceitos em determinada época. Por exemplo, o mito de que o chinelo virado com a sola para cima traz azar, ou a ideia de que um trevo de quatro folhas traz sorte. No entanto, também é verdade que alguns ensinamentos transmitidos pelo conhecimento vulgar possam ser verdadeiros, como a ideia de não colocar a mão no fogo para não se queimar, ou mesmo não entrar em uma lagoa se não souber nadar, porque é possível se afogar.

O conhecimento vulgar também pode se enriquecer do conhecimento científico, especialmente quando este último se torna bastante popularizado ao ponto de seu entendimento se tornar familiar por quase toda população. Por exemplo, a ideia de que certos alimentos, como carnes, são mais bem preservados quando congelados, evitando sua contaminação e exposição a microrganismos no ambiente aberto.

Apesar de estabelecer uma pequena relação com o conhecimento científico, o conhecimento vulgar não é suficiente para explicar a realidade, exatamente por preservar em seu núcleo ensinamentos que podem ser falsos ou simplesmente mitos.

Conhecimento religioso

O conhecimento religioso pode se enriquecer do conhecimento vulgar, especialmente das tradições culturais e religiosas cultivadas ao longo do tempo. Por exemplo, na preservação dos mitos gregos de que os deuses reinavam nos céus, apropriada pelas religiões politeístas.

Esse tipo de conhecimento requer um elemento-chave para alcançá-lo, ao menos da forma como defenderam diversos pensadores da Idade Média, que é a iluminação religiosa como método para conhecer a verdade ou a Deus.

Essa iluminação religiosa seria como um sentimento de vislumbre por uma paisagem maravilhosa, como relatou o cientista Francis Collins (apud SHERMER, 2012) em sua experiência pessoal. É como um sentimento de inspiração e encantamento com algo notoriamente belo, diante do qual uma pessoa não encontra palavras para expressar tal sensação. No entanto, essas experiências religiosas podem ser despertadas mediante o uso de substâncias psicoativas, como alucinógenos ou antidepressivos, ou podem ser vivenciadas igualmente por qualquer pessoa que tenha apreço pela natureza, de modo que seu principal método não caracteriza uma forma autêntica e racionalmente justificada para conhecer a realidade. Por conta da subjetividade envolvida durante a iluminação religiosa, não é possível demonstrar que a observação pessoal produziu cenas reais no cérebro dessas pessoas.

Outro método comumente cultivado na construção do conhecimento religioso é a hermenêutica. A hermenêutica é um tipo de filosofia subjetivista, como defendeu o cientista e filósofo argentino Mario Bunge, porque ela dependeria simplesmente da interpretação do autor para trazer à luz dos escritos bíblicos a extração de um suposto fato vivenciado em tempos remotos.

A hermenêutica é uma abordagem problemática, pois ela não exige a investigação empírica da realidade, como a recolha de dados para contrastar fatos históricos bem documentados com a interpretação pessoal do hermeneuta ou teólogo.

O hermeneuta e o teólogo são os responsáveis por construir esse tipo conhecimento, embora o primeiro contemple uma atividade mais geral, podendo abarcar o uso da hermenêutica para textos literários ou filosóficos. No entanto, como foi apontado anteriormente, o simples fato de invocar a subjetividade do interpretador, ao invés de fatos objetivos, lança um desafio na validade desse tipo de conhecimento.

O conhecimento filosófico: empírico e racionalista

O conhecimento filosófico é amplo, abarcando diversos posicionamentos ao longo da história da filosofia, especialmente o empírico e o racionalista. Esse tipo de conhecimento também pode incluir o religioso, uma vez que a base de todo conhecimento são os pressupostos filosóficos. Noções de verdade, intuição, dedução, cognoscibilidade, crença, realidade, fenômeno, utilidade e outras são conceitos filosóficos indispensáveis em qualquer tipo de conhecimento. O conhecimento empírico pressupõe a cognoscibilidade dos fenômenos com base nas experiências sensíveis do sujeito, enquanto o racional pressupõe que o conhecimento já é derivado da mente do sujeito, independentemente de qualquer experiência empírica.

David Hume e John Locke eram filósofos empiristas e, portanto, defendiam que a fonte de conhecimento derivava dos dados sensíveis. René Descartes, por outro lado, acreditava que o conhecimento eterno ou matemático poderia ser alcançado pelo simples uso da razão, sem a necessidade de qualquer experiência empírica. Embora seja verdade também que ele tenha defendido que uma junção de mais fatores era condição necessária para alcançar verdades absolutas ou irrefutáveis, por via de seu método cartesiano, que estabelecia, no mínimo, quatro condições, como evidência, análise, ordem e enumeração, ele deduzia que todos esses princípios eram alcançados mediante o uso da razão.

Embora Descartes tivesse defendido o papel da razão como principal responsável pelo conhecimento absoluto, ele fez investigações empíricas durante toda sua vida, especialmente nos campos da anatomia e da fisiologia, contribuindo para uma descrição de partes do cérebro humano, como a glândula pineal, e especulando sobre sua real função no organismo.

Houve também pensadores de grande importância da filosofia que tentaram unir os dois tipos de conhecimentos, sendo o mais famoso o filósofo Immanuel Kant, que lançou as bases de seu método racioempirista. Esse método consistia em tomar elementos que ele considerava verdadeiros do empirismo e do racionalismo. Kant apropriou-se do fenomenismo dos empiristas, em que a fonte de conhecimento se dá através dos fenômenos, e não da realidade em si. Kant acreditava que não poderíamos conhecer nada além das aparências, de modo que todo o mundo estaria subordinado a impressões ou dados sensíveis, tal como acredita Hume. Mais ainda, Kant buscou resgatar o apriorismo do racionalismo, argumentando sobre a plausibilidade de verdades independentes da experiência, que, segundo ele, estariam ali, prontas na mente.

O racioempirismo kantiano levou a discussões calorosas no campo da filosofia e, junto com outros pensadores, inspirou posições bem diferentes entre si na filosofia – especialmente, a fenomenologia e o positivismo lógico.

O incômodo com a posição de Kant é que ele havia se apropriado de elementos problemáticos de ambos os conhecimentos empírico e racionalista, não levando em consideração a própria ciência da época na elaboração de sua filosofia. Os astrônomos Galileu Galilei e Johannes Kepler, por exemplo, já investigavam a realidade além dos fenômenos limitados a dados sensíveis. Galileu estendeu sua percepção com um telescópio que ele havia aprimorado e descobriu três satélites de Júpiter, enquanto Kepler havia calculado a trajetória das elipses planetárias usando ferramentas matemáticas, hipóteses auxiliares e instrumentação de medidas. Isaac Newton, um dos maiores nomes da revolução científica, estabeleceu leis científicas que poderiam se aplicar a quaisquer objetos não diretamente observáveis, mas com velocidades menores do que a da luz. Isso, porém, não foi suficiente para ruir a possibilidade de unificação entre empirismo e racionalismo.

No século XX, o cientista e filósofo Mario Bunge procurou unificar o empirismo com o racionalismo, resgatando o conceito de racioempirismo, mas se desvinculando das posições kantianas notoriamente emblemáticas. Bunge uniu a experiência empírica com a condição de exercê-la mediante uso crítico da razão como forma de investigar a realidade. Mais ainda, ele estabeleceu que seria necessária a unificação do realismo com o cientificismo proclamado dos filósofos da ala radical do iluminismo francês, sobretudo com Condorcet, para formular verdades mais profundas sobre o mundo.

O realismo é a filosofia que advoga a existência de um mundo independente do sujeito (realismo ontológico) e que ele pode ser conhecido (realismo epistemológico), mesmo que indireta e parcialmente, enquanto o cientificismo é a posição segundo a qual a ciência pode produzir o conhecimento mais profundo e verdadeiro da realidade, em comparação com outras formas de conhecimentos, como o religioso proveniente da iluminação religiosa ou mesmo do interpretacionismo hermenêutico. Porém, diferente da concepção caricata difundida sobre o conceito de cientificismo, ele não é uma posição preconceituosa e nem autorrefutável, mas uma atitude esperada de qualquer pesquisador interessado em investigar a realidade e que acredita que o progresso científico é possível e desejável. Mais ainda, o cientificismo é um tipo de filosofia que enriquece a ciência, favorecendo a investigação científica, em vez de focar a atenção exclusiva na contemplação excessiva de leituras sagradas ou de ideias do próprio indivíduo, como faziam os filósofos irracionalistas e teólogos, que negligenciaram séculos de progressos científicos. O cientificismo, hoje, está entrelaçado com o realismo, dando origem à posição conhecida como realismo científico.

O realismo científico é a filosofia que admite que podemos tratar teorias científicas como descrições ou representações verdadeiras do mundo, mesmo que sejam, por vezes, incompletas. É a posição mais defendida dentro da filosofia da ciência, em comparação com sua concorrente antirrealista. O antirrealismo, por sua vez, evita fazer uso de afirmações ou teorias que não correspondam diretamente à observação pura da realidade, desconsiderando o progresso contínuo provocado pela física de partículas ao estudar acontecimentos ou elementos que são imperceptíveis diretamente à nossa experiência sensível ou mesmo a teorização ou modelagem matemática de fenômenos macrossociais que escapam da observação individual do pesquisador sociológico.

Em resumo, o conhecimento filosófico é amplo, contemplando posições muitas vezes compatíveis ou relacionáveis com a ciência, enquanto outras vezes apresentando um tipo de conhecimento totalmente oposto ao científico. Sua característica mais fundamental é o exercício de análise lógica dos enunciados e das teorias científicas, geralmente realizadas por filósofos analíticos ou filósofos da ciência. Seu mérito reside no fato de que ele alimenta tacitamente a ciência em um processo de feedback positivo, proporcionando um vocabulário mais refinado para a ciência e, ao mesmo tempo, alimentando seu repertório de problemas com os novos dados da investigação científica.

Assimile 
  1. No mínimo, existem quatro tipos de conhecimentos, cada qual com sua utilidade e aplicação no mundo real.
  2. O conhecimento filosófico também tem uma relação de absorção com outros tipos de conhecimentos, principalmente com o científico, contribuindo para o fornecimento de um tratamento conceitual adequado e o levantamento de problemas sobre a realidade.
  3. Apenas o conhecimento científico possui um mecanismo de autocorreção com o qual ajuda a ciência a se ajustar cada vez mais à realidade.

O conhecimento científico

O conhecimento científico é um tipo de conhecimento sui generis, ou seja, uma classe de conhecimento único em sua forma. Esse tipo de conhecimento levou séculos para que fosse desenvolvido e teve a participação de diversos filósofos ao longo da história, especialmente o egípcio Ibn al-Haytham e o filósofo inglês Robert Grosseteste, além de figuras notoriamente conhecidas como Francis Bacon, Galileu Galilei e David Hume.

Haytham é considerado o primeiro cientista, porque aplicou métodos empíricos de investigação para estudar a óptica, sobretudo os efeitos da luz. Grosseteste, por outro lado, é uma figura comumente negligenciada em livros históricos, mesmo tendo importância central no desenvolvimento das bases do método científico. Por outro lado, a literatura vigente considera apenas as contribuições de Bacon, Galileu, Hume e Descartes.

Bacon advogava pela noção de conhecimento intuitivo, ou seja, a ideia de que, com base em observações particulares, era possível realizar generalizações. Galileu, por outro lado, é conhecido por realmente ter aplicado um método científico para a investigação de objetos celestes, indo além do que os empiristas defendiam, ao usar o raciocínio abstrato, a imaginação e a instrumentalização adequada para ultrapassar suas experiências sensíveis. Hume, porém, limitava-se a propor um método atrelado à percepção, de modo que se fôssemos levar ao pé da letra sua posição, não seria possível algo como biologia molecular, cosmologia e principalmente mecânica quântica, já que essas disciplinas transcendem a pura percepção do investigador científico.

Descartes, no entanto, conciliou um aspecto importante que Hume também defendia, o chamado ceticismo metodológico. O ceticismo metodológico é a posição que nos permite duvidar de certas conjecturas ou hipóteses que não foram submetidas à prova. Essa posição é basicamente uma dúvida razoável, nunca absoluta, na falta de boas evidências. Em resumo, essa é a posição que norteia toda a atividade científica ainda hoje.

Com base numa compreensão mais profunda da realidade, os filósofos do século XX tentaram caracterizar de forma objetiva o conhecimento científico, buscando delimitá-lo de outras formas de conhecimentos, sendo a figura mais importante dessa atitude o filósofo austríaco Karl Popper.

Reflita 
  1. O que torna o conhecimento científico confiável?
  2. Como o conhecimento filosófico pode contribuir com o conhecimento científico?
  3. De forma satisfatória, é possível estabelecer um critério de demarcação entre ciência e pseudociência, indo além das concepções propostas no século XX?

Karl Popper (2013) tentou propor um critério de demarcação entre ciência e não ciência (onde se incluem artes, filosofia e pseudociência), com o objetivo também de responder ao problema de Hume. Sua ideia era de que nenhuma observação é suficiente para confirmar uma teoria, que bastaria um contraexemplo para demonstrar sua falsidade. Analogamente ao exemplo mais tipicamente usado, o fato de observar cisnes brancos em uma região não permite fazer uma generalização apressada de que todos os cisnes são brancos, pois a observação de um cisne negro refutaria a teoria. Então, Popper lançou a condição de que toda teoria, para ser científica, deveria ser passível de falseabilidade ou falseacionismo, ainda mais porque contribuiria para seu refinamento. A falseabilidade é a condição de que teorias devem ter a capacidade de serem provadas falsas em alguma circunstância.

Popper argumentava que a confirmação trivial não assegurava uma boa teoria, utilizando a psicanálise como exemplo de caso para mostrar que a observação do analista geraria uma confirmação excessiva, embora não suficiente para avaliar seu grau de verdade. Mais ainda, ele argumentou que a falta de condições de refutação da teoria psicanalítica seria um elemento vital para sua fossilização, como o caso do inconsciente freudiano, que admite a existência de três instâncias psíquicas ou entidades desencarnadas (id, ego e superego), mas que nunca é clarificado se são conceitos meramente simbólicos ou objetos tão reais quanto axônios, neurônios, sinapses e partículas.

Com seu critério de demarcação, Popper foi duramente criticado pelos filósofos irracionalistas, sobretudo Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Kuhn (2017) defendeu que existiam, no mínimo, duas ciências: a normal e a extraordinária. A normal é a ciência acerca da qual existe minimamente um consenso estabelecido entre a comunidade científica. Em seguida, dentro da ciência normal, segundo Kuhn, ocorre uma crise sem precedentes, ocasionada por uma nova descoberta, passando a existir a dificuldade de estabelecimento de um consenso. Quando essa nova descoberta se consolida, ocorre uma revolução científica, dando início à etapa de uma nova e extraordinária ciência, rompendo com velhas concepções de mundo. Pense, por exemplo, na revolução científica ocasionada pela emergência da teoria da relatividade geral, que, embora seja sempre lembrada como fruto do trabalho de Albert Einstein, também teve a contribuição de outros grandes nomes da física, como Henri Poincaré. A relatividade provocou uma reação de incerteza na comunidade científica por conta de sua aceitação total ao longo de anos e das limitações físicas agora evidentes das teorias newtonianas para o estudo de objetos de grande massa. Isso, porém, não significa que a relatividade geral demoliu a física de Newton. Isso também não sustenta a defesa de Kuhn de que não existe algo como progresso científico. A teoria da relatividade e o uso da mecânica de Newton têm permanecido de pé ainda hoje, sendo a última responsável pela possibilidade de envio de foguetes ao Espaço.

Feyerabend (2011), por outro lado, foi ainda mais radical e sentenciou que não existe algo como método científico e que, na ciência, “tudo vale”, de modo que não existiriam regras para serem seguidas, a ponto de, segundo ele, os cientistas diversos romperem com os protocolos de investigação para formularem suas ideias. Feyerabend foi seduzido por essa visão por conta de sua descrença na medicina científica e a suposta experiência de cura por uma curandeira, o que o levou a relativizar o status epistemológico da medicina em seus trabalhos. Sua posição ficou conhecida como anarquismo epistemológico. Embora essa seja a visão que mais prevalece na academia, ela é falsa, porque ignora que não existe ciência sem método científico (ou seja, sem regras minimamente estabelecidas e/ou procedimentos experimentais de investigação, principalmente de acordo com os princípios da pesquisa bioética) e, principalmente, sem ethos (ou código de conduta) tacitamente aceito pela comunidade científica. Uma ciência sem método não seria capaz de investigar a realidade em todos os seus níveis, também não seria capaz de progredir ao longo dos anos e, mais importante, sem ethos tanto a verdade como a mentira teriam pesos igualmente válidos dentro da comunidade científica.

O ethos da ciência foi primeiramente clarificado pelo sociólogo da ciência Robert K. Merton (1968). Ao investigar a comunidade científica, ele identificou alguns princípios que norteavam a pesquisa científica, sendo eles: comunismo epistêmico, universalismo, desinteresse, ceticismo coletivo e originalidade.

O comunismo epistêmico enfatiza que o conhecimento científico é propriedade de todos, portanto, ele deve ser sempre acessível; o universalismo advoga que todos os cientistas, independente de sua etnia ou localização geográfica, podem contribuir com a ciência; o desinteresse destaca que os cientistas devem agir conforme a comunidade, de acordo com os interesses coletivos, sempre acima dos interesses pessoais; o ceticismo coletivo determina que as reivindicações científicas devem ser submetidas à análise crítica da comunidade; e, finalmente, a originalidade diz respeito à ideia de que as demandas científicas devem contribuir com a novidade, seja na formulação de novos problemas, dados ou teorias. A suspensão do ethos leva ao florescimento da pseudociência.

O conceito de pseudociência, de antemão, exige uma compreensão do que é a ciência. No entanto, nenhum filósofo havia sido capaz de conceituar a ciência de forma adequada, deixando sempre espaço para que reivindicações não científicas se passassem como ciência. O filósofo Mario Bunge (2010) mostrou que a concepção popperiana de ciência deixava espaço para que reivindicações parapsicológicas fossem tratadas como ciência, simplesmente porque satisfaziam o critério de falseabilidade. Porém, como Bunge enfatizou, o que torna um campo científico não é sua condição de falseabilidade, mas uma série de princípios, entre os quais estão incluídos um fundo de conhecimento, uma base formal, uma epistemologia realista, uma ontologia materialista, um ambiente livre de pesquisa e, principalmente, a prática de um ethos entre membros da comunidade científica. Nesse sentido, Bunge (2014) define a ciência como um sistema de ideias caracterizados como um conhecimento sistemático, racional, exato, verificável e, portanto, falível, sendo uma representação conceitual do mundo. Além disso, quando um campo falha em satisfazer a maior parte dos princípios de cientificidade, ele pode ser considerado pseudocientífico.

A pseudociência, consequentemente, pode ser conceituada de forma oposta à ciência, como sendo um sistema de crenças subjetivas, irracionalistas ou puramente intuicionistas, inexata, inverificável e, portanto, dogmática, pois ela não submete à prova suas crenças, não exige uma linguagem clara, precisa e objetiva, nem um vocabulário articulado de ideias inter-relacionadas, e, quando se mostra falha, como na hipótese da existência do inconsciente freudiano da psicanálise ou das ondas psi da parapsicologia, ela permanece estagnada no tempo, não atualizando suas crenças à luz de novas evidências.

Em resumo, o conhecimento científico é um tipo especial de conhecimento, que possui em seu aspecto central a revisão constante de hipóteses e teorias científicas, sempre submetendo à prova conjecturas e, mais ainda, proporcionando a melhor representação da realidade em todos os seus níveis (físico, químico, biológico, psicológico, social, artificial, etc.). Por ser um tipo de conhecimento antidogmático por princípio, ele não deve ser confundido com a pseudociência, em que, em sua característica mais essencial, o livre debate de ideias é substituído pelo culto à autoridade e pela salvação contínua de crenças falsas, por conta do sentimento de incerteza provocado pelo mal entendimento da ciência.

Exemplificando 
  1. O conhecimento vulgar (ou senso comum) absorve todos os tipos de conhecimentos ao longo dos anos. No entanto, ele pode conservar em seu núcleo crenças falsas sobre a realidade. Por sua vez, o conhecimento religioso possui, ao menos, duas abordagens principais, como a que é baseada na iluminação religiosa e a interpretacionista, advogada por teólogos ou hermeneutas. De forma semelhante ao conhecimento vulgar, esse tipo de conhecimento pode manter ideias falsas em seu núcleo, sobretudo por focar sua abordagem mais no indivíduo subjetivo do que na investigação da realidade externa.
  2. O conhecimento filosófico é amplo em sua forma, sendo difícil delimitá-lo. Por essa razão, ele pode ser desenvolvido em uma relação de dependência do conhecimento científico, como também é possível fazê-lo de forma independente. No entanto, sua característica mais fundamental tem sido a clarificação dos conceitos utilizados em diversos tipos de conhecimentos. Além disso, ele é um tipo de conhecimento que permite fazer certas generalizações sobre a realidade. Por exemplo: todos os objetos existentes são materiais; todos os objetos reais possuem propriedades físicas, como energia; a realidade é um grande sistema emergente e material; as leis da natureza revelam a impossibilidade da existência de entidades desencarnadas, como almas, espíritos, inconsciente freudiano ou cérebros dualísticos.
  3. O conhecimento científico é único em sua forma. É o tipo de conhecimento que produz o entendimento mais profundo e verdadeiro sobre a realidade, indo além das percepções empiristas, a partir do momento que destaca o importante papel da teorização e modelagem para representar a realidade com base nas evidências. Sua característica mais fundamental é o mecanismo de autocorreção, que permite corrigir imprecisões e, então, refinar cada vez mais as explicações sobre o mundo. Por sua natureza particular, é um conhecimento antidogmático por princípio.

No decorrer do livro, foram exemplificados os diversos tipos de conhecimentos existentes, bem como os desafios que cada um deles enfrenta. Também foi explicado como diferentes tipos de conhecimentos podem ser relacionados com outros, como na relação recíproca entre o conhecimento filosófico e o científico, em que um enriquece o outro, proporcionando um aumento gradual do conhecimento na esfera da atividade humana. Dessa forma, espera-se que, com base nessa introdução, você tenha a capacidade de distinguir os diversos tipos de conhecimentos, bem como de procurar aprofundar seu conhecimento ao longo dos anos.

Faça valer a pena

Questão 1

A falseabilidade é o princípio filosófico no qual uma teoria, para ser considerada científica, deve ser capaz de realizar predições que sejam possíveis de serem provadas falsas em alguma circunstância. Um exemplo bastante difundido para expressar a ideia é a observação de um grupo de cisnes brancos não ser suficiente para afirmar que todos os cisnes são brancos, já que a observação de um cisne negro refutaria a afirmação.

Qual o primeiro filósofo a propor a falseabilidade como um critério de demarcação para a ciência?

Tente novamente...

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Correto!

O filósofo da ciência Karl Popper propôs, em meados do século XX, a falseabilidade como critério de demarcação, especialmente com o objetivo de delimitar as fronteiras entre a ciência e a não ciência, com o último grupo incluindo a arte, a filosofia, a teologia, a pseudociência e a religião. Sua obra mais famosa, em que ele explica seu critério de demarcação com maior profundidade, é A Lógica da Pesquisa Científica (2013).

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Questão 2

O ethos da ciência é o conjunto de princípios éticos coletivos que norteia a comunidade científica. Esses princípios foram percebidos, pela primeira vez, pelo sociólogo da ciência Robert K. Merton, que destacou seus aspectos principais.

Quais princípios formam o ethos da ciência?

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Correto!

O ethos da ciência destaca os aspectos éticos observados e estudados pela primeira vez pelo sociólogo da ciência Robert K. Merton. Nomeadamente, eles são conhecidos por comunismo (os resultados científicos são propriedade comum de toda a sociedade), universalismo (todos os cientistas do mundo podem contribuir com a ciência), ceticismo (toda hipótese ou teoria deve ser submetida à análise crítica de toda a comunidade científica), desinteresse (os interesses coletivos devem estar acima dos interesses próprios) e originalidade (a contribuição da comunidade científica com a novidade, através de dados, problemas, ideias, hipóteses e teorias). Em seu livro Sociologia: Teoria e Estrutura (1968), Merton descreve esses princípios éticos com maior exatidão, explicando suas consequências na comunidade científica.

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Questão 3

A pseudociência é conhecida por conta de sua marginalidade frente ao conhecimento científico do momento, de modo que ela não segue nenhum critério objetivo de investigação e nem sequer cultiva uma comunidade crítica para a análise de suas ideias.

Quais são as características fundamentais da pseudociência?

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Correto!

A pseudociência apresenta características totalmente opostas à ciência na forma como supostas condições são estabelecidas para a defesa de seu conjunto de crenças. Essas características são: (a) falsidade, porque mantém crenças falsas em seu núcleo; (b) subjetivismo, porque mantém uma linguagem aberta a interpretações múltiplas, sem cuidado com a objetividade característica da ciência; (c) dogmatismo, porque não muda e nem atualiza quando falha; e (d) obscurantismo, porque faz uso de jargões incompreensíveis e nunca expõe suas reais intenções.

Tente novamente...

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Referências

BUNGE, M. Caçando a Realidade: a luta pelo realismo. Tradução de Gita K. Guinsburg. [S.l.]: Editora Perspectiva, 2010. 

BUNGE, M. La Ciencia, su Método y su Filosofía. [S.l.]: Editora Sudamericana, 2014.

BUNGE, M. Las pseudociencias ¡vaya timo! 2. ed. [S.l.]: Editora Laetoli, 2014.

BUNGE, M. In Defense of Realism and Scientism. Annals of Theoretical Psychology, Boston, v. 4, p. 23-26, 1986. Springer US. Disponível em: https://bit.ly/3b59Qg3. Acesso em: 24 nov. 2020.

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