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Nosso objetivo é formar alunos cidadãos competentes e proficientes nas diferentes situações de usos da língua falada e escrita.
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Ao conceber a ideia de que o principal propósito do ensino de Língua Portuguesa é desenvolver sujeitos capazes de agir e pensar em diversas situações de comunicação, considera-se que uma metodologia de ensino baseada na noção de gêneros textuais é uma forma muito promissora para se chegar a esse objetivo, pois proporciona ao aluno situações parecidas com as que ele se envolve fora da escola, em qualquer situação do seu cotidiano.
Apesar disso, os gêneros devem passar por um processo de didatização, pois ainda há na escola uma transposição didática que não vincula suas práticas de origem de forma adequada, ou seja, ainda há um uso do gênero textual apenas como pretexto para ensinar as normas da gramática, o vocabulário e/ou outros conteúdos, por exemplo, quando o professor de Língua Portuguesa utiliza o texto apenas para ensinar as regras da língua, sem aprofundar em sua leitura, análise, função social e contexto de uso. Assim, é necessário que se desenvolvam estratégias pedagógicas com o intuito de que o trabalho com o gênero seja uma atividade discursiva e cognitiva, a partir de um conjunto de práticas sistematizadas segundo um objetivo maior: formar alunos cidadãos competentes e proficientes nas diferentes situações de usos da língua falada e escrita.
Dessa forma, nossa discussão nesta seção terá como foco o estudo dessas estratégias para que você saiba como planejar, organizar e executar práticas docentes que atinjam seus objetivos enquanto professor que pretende trabalhar com os gêneros textuais.
Você foi contratado recentemente por uma escola da rede privada, para lecionar aulas de Produção Textual a alunos de ensino fundamental. No cronograma previsto pela escola e de acordo com os conteúdos previstos pelo seu material didático, o primeiro gênero textual a ser ensinado para a sua turma será o resumo. Você terá, de acordo com o calendário escolar, apenas quatro aulas de 45 minutos para trabalhar esse conteúdo, o qual será base para a 1ª avaliação bimestral da turma (que também será preparada por você).
Ao analisar seu material didático, você percebe que o conteúdo é trabalhado em apenas duas páginas, nas quais há somente uma série de tópicos com características básicas de gênero, alguns pequenos trechos de resumos (produzidos há mais de cinco anos, conforme indicam as fontes, e publicados em revistas de grande circulação) e, no final, a solicitação de produção textual, cujo enunciado pede para que o aluno faça um resumo, em até 20 linhas, de qualquer texto que ele queira.
A partir dessa situação, você constata que somente aquele material de apoio não será suficiente para que o gênero seja explorado em sua plenitude, então decide preparar uma sequência didática, em que utilizará tanto o livro didático quanto uma série de materiais complementares preparados por você.
Assim, considerando o contexto exposto, você deve planejar uma sequência didática para trabalhar o ensino do gênero Resumo. Dessa forma, neste primeiro momento, você utilizará as duas primeiras aulas para a produção de um material e atividades de leitura e análise do gênero resumo.
Seja bem-vindo e aproveite cada parte desta seção dedicada às práticas pedagógicas para o ensino por meio dos gêneros discursivos!
Por um bom tempo, no ensino de Língua Portuguesa, o texto foi usado como pretexto para realizar atividades gramaticais, e acreditava-se que isso era uma abordagem contextualizada e adequada. Apesar disso, ainda hoje há muitas instituições de ensino que continuam com essa prática, baseando-se na repetição e memorização de regras, sem contextualização e sem partir do conhecimento já pertencente ao aluno. Ademais, a avaliação é vista como forma de atribuir nota e não parte de um diagnóstico acerca dos conhecimentos construídos em sala de aula.
A concepção de texto no ambiente escolar determina a aprendizagem dos gêneros nos aspectos de leitura e escrita, abordando-o em sua funcionalidade, que considere a relação autor-texto-leitor/ouvinte-situação comunicativa-contexto de produção.
Dessa forma, analisar os conhecimentos prévios a respeito do gênero é uma atividade diagnóstica para que se analisem as necessidades de mediação e as habilidades já recorrentes nos textos dos alunos acerca dos gêneros em estudo.
Assim, as sequências didáticas que compõem a transposição didática devem ser pensadas e organizadas no sentido de, primeiramente, “diagnosticar” os conhecimentos prévios, as dificuldades acerca dos conceitos e procedimentos de escrita e de leitura para então formular atividades de intervenção, pois, como afirma Britto (2011):
Se todos concordam que existe a doença, o mesmo não acontece com o diagnóstico. Dentro de um aparente consenso de que a “performance” estudantil situa-se abaixo dos níveis desejados, há uma gama enorme de opiniões, que vão desde “o estudante não sabe escrever porque não lê”, até aquelas que se preocupam mais com as causas e as razões do que com a condenação pura e simples do estudante. (BRITTO, 2011, p. 117)
Para se utilizar os gêneros de forma didática, é necessário que seja planejado um processo de transposição didática. Esse processo é composto por materiais didáticos que veiculam o conhecimento científico acerca dos gêneros para o nível de conhecimento que deve ser ensinado, conforme o perfil dos alunos. Além disso, consiste nas transformações pelas quais um conjunto de conhecimentos sofre, quando há o intuito de ensiná-los. Os conteúdos que serão ensinados devem ser escolhidos levando em conta tanto o saber científico quanto as práticas sociais de linguagem.
A transposição didática acontece por meio das sequências didáticas, ou seja, atividades progressivas, planejadas com base em um tema, a partir de um objetivo geral, que podem ou não ter uma produção de texto final (MACHADO; CRISTÓVÃO, 2006).
No seguinte artigo, as autoras investigam um quadro significativo da transposição didática da teoria dos gêneros textuais, a partir da análise de um capítulo do livro Português: linguagens (CEREJA; MAGALHÃES, 2004), cujo objeto de trabalho é o gênero “crítica”. Os critérios de análise foram estabelecidos a partir da leitura do manual do professor que acompanha o livro didático, e, nele, os autores explicitam que as atividades propostas para os capítulos de “produção textual” são embasadas na teoria de gêneros bakhtiniana. Para apreender o tratamento didático que os autores dão à produção textual – considerando que o capítulo em análise constitui um conjunto de atividades centrado em um gênero textual –, fundamentamos a análise na abordagem teórica do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003) e nas pesquisas de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) a respeito das sequências didáticas centradas em gêneros textuais.
BARROS, E. M. D.; NASCIMENTO, E. L. Gêneros textuais e livro didático: da teoria à prática. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, v. 7, n. 2, p. 241-270, mai./ago. 2007.
A sequência didática é um procedimento organizativo, que consiste em um “conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 96) e multissemiótico. De acordo com esses autores, as sequências didáticas ocorrem pelas seguintes razões:
Transposição didática e sequência didática não se referem aos mesmos processos. A transposição é uma prática mais abstrata; trata-se da transmissão de conteúdo científico para conteúdo que deve ser ensinado em sala de aula. A sequência didática é uma das práticas metodológicas pelas quais se pode exercer a transposição, ou seja, no ambiente escolar, em que constantemente se pretende transmitir conhecimento, tal prática é possível por meio de uma sucessão de atividades pensadas, elaboradas e executadas pelo professor.
A sequências didáticas usadas para ensinar a leitura e a escrita de gêneros estruturam-se em quatro etapas, que são:
A partir disso, Joaquim Dolz e Bernard Schneuwly propõem em seu livro Gêneros orais e escritos em sala de aula (2004) um modelo para o trabalho com gêneros textuais. Esse modelo pretende orientar o professor no desenvolvimento de práticas relevantes que trabalhem com situações reais da língua em uso.
De acordo com os autores, deve-se, primeiramente, fazer uma apresentação da situação comunicativa que será estudada, a qual visa envolver o aluno no projeto de produção textual que será desenvolvido. Para isso, é essencial expor exemplos do gênero em estudo para já trabalhar a leitura e a reflexão da situação de produção do gênero. Assim, é importante refletir acerca do contexto de produção, o interlocutor, o assunto, o local de circulação, a finalidade, a composição, a linguagem e outras características.
A seguir, deve-se propor a escrita de um primeiro texto, que será o ponto de partida para o professor identificar os conhecimentos prévios do alunos sobre o gênero, além de pontuar os aspectos mais frágeis para planejar adequadamente as próximas atividades. Ademais, essa primeira produção textual servirá de base para comparar o desenvolvimento do trabalho em relação à última produção.
Nos módulos centrais da proposta devem ser trabalhadas as dificuldades encontradas na primeira produção textual, e diversas atividades podem compor esses módulos, ou seja, não é uma quantidade limitada (isso depende, é claro, do tempo que se tem para trabalhar o gênero, das dificuldades diagnosticadas e outros aspectos). A sugestão é de que isso aconteça em pelo menos três etapas.
Esses módulos de atividades são formulados a partir das especificidades de cada gênero. Assim, cada gênero permite tipos de atividades diferentes em momentos diversos, por isso é necessário um planejamento que compreenda a quantidade de tempo em que isso pode ser feito, o perfil dos alunos, os recursos disponíveis para isso etc.
Nesse momento, também é interessante desenvolver uma espécie de “grade de avaliação”, em que são estipulados critérios avaliativos a respeito do gênero, que orientarão a produção final.
As atividades da terceira etapa compreendem observar e analisar textos, os quais devem ser autênticos ou não, do mesmo gênero ou não. Também devem acontecer tarefas mais simples de produção textual, ou seja, pequenas produções textuais que podem levar o aluno a descartar problemas de linguagem, por exemplo. Por fim, pode-se elaborar uma linguagem comum, a fim de criticar, mudar, comentar as produções textuais (isso pode ser feito pelo próprio aluno ou pelos colegas, por meio de troca dos textos, por exemplo).
Na quarta e última etapa é desenvolvida a produção final do gênero estudado nas etapas anteriores. Nesse momento, o professor devolverá ao aluno a primeira produção textual, para que ele mesmo possa revisar, aprimorar e aplicar os conhecimentos adquiridos nas etapas anteriores. Essa atividade leva o aluno a refletir acerca daquilo que escreveu e, conse-quentemente, adquirir conhecimento sobre o gênero.
Uma alteração proposta por Costa-Hübes e Simioni (2014) acrescenta uma etapa de leitura e reconhecimento do gênero antes da proposta de produção inicial. Essa atividade consiste em apresentar textos que mostrem elementos prototípicos da situação de comunicação do gênero. Além disso, propõe uma etapa final de circulação social do gênero.
Como você pôde perceber, os procedimentos metodológicos nas se-quências didáticas dependem muito do contexto em que o professor está inserido, ou seja, dos recursos disponíveis na escola, do perfil dos alunos, do tempo disponível para trabalhar com o gênero, além do cronograma do ano letivo. Então, como seria transformar uma sequência didática eficaz quando não se tem muitos recursos?
É possível perceber que aprender a escrita ocorre por meio da identificação da circulação social dos gêneros, pois os alunos reconhecerão que o ato de escrever não é uma ação pontual e somente escolar. Também, deve-se destacar que escrever não é algo espontâneo e natural como a fala, pois necessita de planejamento, adequação das características de determinado gênero, refação, revisão, avaliação dos textos e outras atividades, conforme afirmam Koch e Elias (2012, p. 30):
Trabalhando cada um deles separadamente e levando o aluno a perceber que o texto escrito difere daquele que usa na interação face a face, tendo, portanto, suas especificidades, ele acabará por construir um outro modelo de texto – o do texto escrito – e será capaz de, se e quando necessário – utilizar de forma adequada os recursos próprios desta modalidade.
A seguir, são expostos alguns exemplos de gêneros textuais presentes em dois campos diferentes, de acordo com a BNCC:
CAMPO DA VIDA COTIDIANA – Campo de atuação relativo à participação em situações de leitura, próprias de atividades vivenciadas cotidianamente por crianças, adolescentes, jovens e adultos, no espaço doméstico e familiar, escolar, cultural e profissional. Alguns gêneros textuais deste campo: agendas, listas, bilhetes, recados, avisos, convites, cartas, cardápios, diários, receitas, regras de jogos e brincadeiras. (BRASIL, 2020, p. 96)
CAMPO DA VIDA PÚBLICA – Campo de atuação relativo à participação em situações de leitura e escrita, especialmente de textos das esferas jornalística, publicitária, política, jurídica e reivindicatória, contemplando temas que impactam a cidadania e o exercício de direitos. Alguns gêneros textuais deste campo: notas; álbuns noticiosos; notícias; reportagens; cartas do leitor (revista infantil); comentários em sites para criança; textos de campanhas de conscientização; Estatuto da Criança e do Adolescente; abaixo-assinados; cartas de reclamação, regras e regulamentos. (BRASIL, 2020, p. 104)
Dessa forma, o trabalho com as sequências didáticas permite que os alunos se conscientizem a respeito de sua aprendizagem, por meio de um conhecimento construído em espiral, gradualmente, partindo das interações sociais que os alunos vivenciam.
BARROS, E. M. D.; NASCIMENTO, E. L. Gêneros textuais e livro didático: da teoria à prática. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, v. 7, n. 2, p. 241-270, mai./ago. 2007. Disponível em: https://bit.ly/3hK32Ew. Acesso em: 9 jun. 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2020. Disponível em: https://bit.ly/2FW4INU. Acesso em: 12 jun. 2020.
BRITTO, L. P. L. Em terra de surdos-mudos (um estudo sobre as condições de produção dos textos escolares. In: GERALDI, J. W. (Org.). O Texto na Sala de Aula. São Paulo: Ática, 2011.
BRONCKART, J.-P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 2003.
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português: linguagens – literatura, produção de textos. 4. ed. São Paulo: Atual, 2004. (Gramática, v. 2, livro do professor)
COSTA-HÜBES, T. C.; SIMIONI, C. A. Sequência didática: uma proposta metodológica curricular de trabalho com os gêneros discursivos/textuais. In: BARROS, E. M. D.; RIOS-REGISTRO; E. S. (Orgs.). Experiências com Sequências Didáticas de Gêneros Textuais. São Paulo: Pontes Editores, 2014.
DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáti¬cas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e Escrever: Estratégias de Produção Textual. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2012.
MACHADO, A. R.; CRISTOVÃO, V. L. L. A Construção de Modelos Didáticos de Gêneros: Aportes e Questionamentos para o Ensino de Gêneros. Linguagem em (Dis)curso (Online), v. 6, p. 9, 2006.