PRATICAR PARA APRENDER
As fraudes ocupacionais relacionam-se a corrupção, apropriação indébita de ativos e falsificação de informações. Dentro do contexto “falsificação”, as evidências documentais são consideradas como afirmações escritas ou gravadas de fatos ocorridos ou não, uma vez que podem envolver a omissão, manipulação, adulteração, exclusão, etc. de alguns dados em documentos ou, ainda, lançamentos contábeis gerados sem o devido suporte documental.
Hoje, com o avanço dos cibernegócios e a transformação dos dados em arquivos digitais, fraudes documentais virtuais passaram a fazer cada vez mais parte do âmbito empresarial, dificultando progressivamente o processo de investigação, o que leva peritos a integrarem processos tecnológicos forenses e técnicas de analytics para manter a integridade das informações colhidas.
Para contextualizar sua aprendizagem, imagine que você faça parte de uma equipe que investiga uma denúncia anônima recebida pela empresa MN Corporação, a qual alega que um funcionário da corporação teria alterado o código de barras de boletos emitidos pelos fornecedores, vinculando os valores a receber a contas bancárias de empresas relacionadas a ele. Após o pagamento do boleto adulterado, o profissional teria realizado o pagamento ao fornecedor de direito, gerando dois pagamentos no mesmo valor para cada boleto. E, para que o esquema não fosse identificado, ele contabilizava os dois pagamentos contra as contas a pagar da empresa MN Corporação.
No seu ponto de vista, quais documentos devem ser analisados para evidenciar cada um dos elementos das alegações apresentadas anteriormente? E com qual objetivo ou justificativa devem ser examinados?
Então, vamos lá? Reflita sobre os seus conhecimentos contábeis e indique o que realmente precisa ser feito.
Conceito-Chave
Documento é qualquer base de conhecimento que se possa utilizar para consulta ou prova, pois é a reprodução de um fato ou pensamento, independentemente da forma como é apresentado: em papel, em arquivo, em vídeo, etc.
Num primeiro momento, deve-se analisar a autenticidade do documento, que vem da garantia da originalidade do seu conteúdo. Verifica-se a sua procedência e identifica-se a possibilidade de que seja modificado, desvinculado ou reutilizado em outro local.
Em seguida, é preciso analisar a sua consistência, ou seja, se há suporte material ou algum fato que o tenha gerado. Ele não pode ser alvo de adulteração ou cancelamento e, caso isso aconteça, tais eventos devem ser detectados.
Dentro da perícia, a análise documental é utilizada para garantir a autenticidade da informação nos meios judiciais e/ou extrajudiciais e impedir que as fraudes aconteçam. É um procedimento que usa técnicas capazes de identificar, de forma segura, se houve adulterações em textos e constatar, até mesmo, se houve coação no momento da escrita.
Atualmente, o documento não é apresentado apenas por meio de papel. Temos observado, cada vez mais, a exibição das informações por meio eletrônico, em função da rapidez no trânsito de dados, trazendo aos meios empresariais a redução de espaços físicos e a diminuição dos custos operacionais.
No entanto, essa alteração de suporte também deve satisfazer o mesmo grau de segurança dos documentos em papel. A partir da aplicação de recursos técnicos, também é necessário assegurar a consistência e a procedência da informação.
Reflita
A tecnologia e os estudos sobre as análises documentais têm avançado muito, mas os falsificadores também vêm se aperfeiçoando.
Diante disso, cabe ao perito manter-se capacitado, a fim de estar sempre um passo à frente dos fraudadores e, assim, tentar inibir e minimizar todos os estragos.
A perícia documental se inicia a partir da identificação do formato em que os dados são apresentados: em papel ou de modo digital.
Começaremos descrevendo o processo a partir do documento digital, que pode ser exibido de forma estruturada (arquivos em XML, sistema integrado ERP, etc.) ou de forma não estruturada (e-mails, planilhas, vídeos ou áudios, etc.).
Depois de identificar o documento e a forma pela qual é exposto, o próximo passo é a sua preservação, com o isolamento e a proteção da informação. A coleta acontece respeitando a cadeia de custódia e a verificação da integridade da informação, para assegurar que os dados não se alterem durante a manipulação do perito. Nesse momento, são utilizadas técnicas de analytics para que se respeite a extração dos dados, a preservação dos metadados e a recuperação do que foi deletado.
Lembre-se
Analytics são análises e raciocínios sistemáticos aplicados a diversos negócios ou departamentos, gerados para uma tomada de decisão. É um conceito entendido como um ramo do Business Intelligence (BI).
O planejamento de uma perícia documental digital deve considerar os seguintes passos:
- Entendimento do caso e definição do escopo do trabalho: início do planejamento do trabalho pericial.
- Mapeamento de dados e sistemas: entendendo se eles são estruturados ou não estruturados.
- Planejamento da coleta: definindo qual tecnologia e quais técnicas devem ser aplicadas durante uma investigação.
- Preservação e recebimento de custódia: identificando quem disponibilizou os dados e como as evidências foram manuseadas.
- Documentação: identificando as características das evidências coletadas e os dados do servidor de dados.
- Imagem forense: identificando as características da imagem gerada (data, horário, servidor, forma de acesso) e os softwares utilizados.
- Validação da coleta: verificando a integridade e a legibilidade da informação.
- Devolução da custódia: mantendo-a na análise apenas pelo tempo necessário.
Durante a revisão dos documentos e a partir de dados não estruturados, deve-se ter especial atenção ao tentar reduzir a quantidade de informações coletadas, que chegam de formas dispersas, para que evidências importantes não passem despercebidas. O processo também deve envolver a organização dos documentos, a revisão (que deve seguir um protocolo predefinido) e o acompanhamento da revisão, com a aplicação de técnicas de verificação de qualidade.
Por meio dos dados estruturados, devem-se analisar todas as camadas dos sistemas que a companhia utiliza, com a aplicação de testes de integridade, documentais, sistêmicos e de hipóteses. Os testes de integridade têm como propósito identificar se existem diferenças com relação aos valores movimentados entre todos os sistemas e se há justificativas plausíveis para possíveis divergências.
Dentro dos sistemas, é preciso verificar se existem políticas de conciliação entre os módulos ou sistemas adotados pela empresa e se os controles externos indicam os mesmos valores encontrados nos sistemas.
Nos testes documentais, torna-se necessário checar se as quantidades de registros são iguais às quantidades coletadas e se os totais vistos nas telas são os mesmos vistos nos arquivos coletados.
Por último, devem-se desenvolver os testes de hipóteses, que buscam anomalias e padrões na qualidade dos dados, a partir da aplicação de técnicas estatísticas.
A perícia documental, ou documentoscopia, costuma ser utilizada tomando como base documentos em papel e envolve:
- A análise de assinaturas, documentos e textos, fazendo o reconhecimento por meio da comparação das escritas (grafoscopia).
- A identificação de modificações feitas em documentos, como substituições, emendas, raspagens, rasuras, entre outros tipos de alterações.
- A comprovação de que o documento foi escrito por meio de coação, a partir de modificações na escrita causadas por efeitos de coação, doenças e até mesmo uso de drogas.
- A recuperação de documentos danificados que estejam molhados, raspados e até mesmo queimados, identificando textos cobertos por líquidos corretores ou tintas.
- A identificação de fraudes a partir da verificação de assinaturas, analisando se houve substituição de folhas encadernadas, se a escrita foi feita com tinta invisível, etc.
Assimile
Grafoscopia, também conhecida como grafotecnia, é uma parte da documentoscopia que tem como objetivo estudar a escrita, verificando sua autenticidade e autoria a partir de características gráficas utilizadas na elaboração de um documento.
O fato é que, independentemente da forma como a informação se apresenta, seja em papel ou via digital, sempre que existe algum indício de fraude, o processo de investigação deve passar, obrigatoriamente, pela análise documental.
Vejamos, a seguir, alguns exemplos de esquemas de fraudes e os testes recomendados para cada um deles, de acordo com a EY Forensics Academy (2022).
Receitas fictícias: ocorrem por meio do registro de vendas de produtos ou serviços que não aconteceram. Envolvem frequentemente o registro de clientes falsos, mas também podem ser oriundas do registro de receitas falsas (de transações que nunca existiram) atribuídas a clientes verdadeiros.
Testes recomendados:
- A perícia deverá buscar as evidências da receita, analisando ordens de vendas, contratos assinados entre as partes, comprovantes de recebimentos e a locação em centros de custos.
- A perícia deverá analisar as contas a receber, na tentativa de conciliar as receitas com os clientes para identificar inconsistências.
- A perícia deverá analisar as receitas versus controles gerenciais da empresa, investigando a mensuração dos serviços prestados e/ou do custo da mercadoria/produto vendido para também identificar inconsistências.
- A perícia deverá analisar os estoques da empresa, analisando os inventários, os controles de estoques, etc., buscando confrontar com as receitas apresentadas.
O que normalmente chama a atenção do perito:
- Uma quantidade de contas a receber vencidas descomunalmente grande.
- Transações significativas, fora do curso usual de negócios, e com partes relacionadas ou entidades que não sejam auditadas.
- Contas a receber pendentes de clientes difíceis ou impossíveis de se identificar.
- Volume de vendas significativo para entidades cujos sócios/objeto social sejam desconhecidos.
- Alto volume de cancelamentos.
Diferenças temporais: trata-se do deslocamento de receitas ou despesas ao longo do tempo, de modo a manipular o resultado. Envolve o income smoothing ou o “gerenciamento dos resultados”.
Testes recomendados:
- A perícia deverá fazer análises temporais das receitas versus fluxos de caixa, para identificar possíveis inconsistências.
- A perícia deverá analisar os controles gerenciais, com o objetivo de acompanhar a evolução das receitas e das despesas.
- A perícia deverá analisar os documentos que suportaram os registros contábeis, como os contratos firmados entre as partes (que determinavam as condições comerciais), as notas fiscais, os comprovantes de pagamentos e os boletins de medição.
O que normalmente chama a atenção do perito:
- Crescimento rápido ou não usual da lucratividade.
- Geração negativa de fluxo de caixa operacional associada a reportes de crescimento em receita.
- Transações significativas, fora do curso usual de negócios, e próximas do final do período, levando a questionamentos sobre sua essência.
- Crescimento não usual da margem bruta.
Avaliação indevida de ativos: ocorre por meio da manipulação dos valores de ativos, normalmente com o objetivo de inflar ativos do balanço ou melhorar indicadores financeiros.
Testes recomendados:
- O perito deverá analisar as contas a receber, fazendo a circularização de clientes (com o envio de solicitação de informações sobre os valores em aberto), recalculando as Perdas Estimadas para Crédito de Liquidação Duvidosas (PECLD) e aplicando os testes de liquidação.
- O perito deverá analisar os estoques, buscando recalcular as perdas de itens obsoletos, e analisar os documentos que comprovam a aquisição dos estoques.
- O perito deverá analisar todo o imobilizado da empresa, identificando os laudos de avaliação e o inventário físico dos ativos imobilizados, além de verificar documentos que comprovam a aquisição desses bens, como os pedidos de compras, as notas fiscais e os comprovantes de pagamentos.
O que normalmente chama a atenção do perito:
- Superavaliação das contas a receber por estimativa inadequada da PECLD.
- Quantidade de contas a receber vencidas de forma descomunal.
- Vendas para clientes com restrições e/ou inaptos.
- Avaliação inadequada do custo dos estoques.
- Inexistência física dos estoques.
- Inexistência física de ativos imobilizados.
- Depreciação acumulada subavaliada por erro de cálculo.
- Inadequação de balanceamento de saldo decorrente da classificação de curto e longo prazo.
Omissão de passivos e despesas: meio de melhorar o resultado de uma demonstração financeira. Normalmente, é a fraude mais difícil de se detectar, pois, como são dados omitidos, costuma não deixar traços.
Testes recomendados:
- O perito deverá comparar a variação do fluxo de caixa, considerando tendências de receitas e despesas.
- O perito deverá analisar a variação da margem dos prazos médios de pagamentos (Days Payable Outstanding – DPO) das obrigações.
- O perito deverá revisar todas as transações ocorridas após o período final das demonstrações financeiras.
- O perito deverá analisar todos os documentos que comprovam as despesas e as obrigações da empresa, como notas fiscais e comprovantes de pagamentos.
O que normalmente chama a atenção do perito:
- Geração negativa e recorrente de fluxo de caixa operacional, mesmo reportando crescimento em receita.
- Ativos, passivos, receitas ou despesas baseados em estimativas que envolvam julgamento subjetivo ou premissas difíceis de se embasar.
- Participação/preocupação excessiva da administração não financeira nas decisões contábeis (princípios e estimativas).
- Crescimento incomum na margem bruta ou excessivo em relação a parâmetros da indústria.
- Diminuição incomum do número de DPO em comparação aos concorrentes.
Divulgações indevidas: princípios contábeis requerem que sejam divulgadas todas as informações relevantes ao negócio de uma organização, o que é suscetível a subjetividade e manipulação.
Testes recomendados:
- O perito deverá analisar todas as atas de reuniões ocorridas após a data de encerramento do exercício até a data de publicação das demonstrações contábeis.
- O perito deverá observar os eventos subsequentes, como os pagamentos e os recebimentos emitidos entre as datas do encerramento do exercício e da publicação das demonstrações.
- O perito deverá analisar a carta da administração aos auditores e a declaração de anticorrupção.
- O perito deverá analisar todos os contratos mútuos e os documentos que suportam as transações entre partes relacionadas.
O que normalmente chama a atenção do perito:
- Administração dominada por uma pessoa ou grupo pequeno, sem que haja controles que compensem esse fato.
- Supervisão inefetiva do comitê de auditoria.
- Políticas de integridade ineficazes ou sem a devida execução.
- Transações complexas pós-fechamento do exercício.
- Transações significativas com partes relacionadas fora do curso usual de negócios.
- Incidência de contas bancárias, filiais e movimentação em paraísos fiscais.
- Estrutura organizacional complexa, envolvendo entidades incomuns aos negócios.
Exemplificando
A companhia brasileira Via Varejo, proprietária de empresas como Ponto Frio, Casas Bahia, etc., encontrou evidências de fraudes contábeis em suas demonstrações financeiras referentes ao 4º trimestre de 2019, o que resultou em um impacto de R$ 1,19 bilhão nas despesas do resultado e na consequente diminuição do seu lucro.
Do montante total, R$ 1 bilhão se referia a provisões para contingências de processos trabalhistas e R$ 76 milhões, à baixa/depreciação de ativos fixos fora da competência. O esquema de fraude utilizado pela empresa se referiu a “diferenças temporais”. Caso você queira saber mais detalhes sobre o assunto, faça a leitura do texto indicado a seguir. Para acessar o material, consulte o link disponível nas Referências desta seção.
CONCLUSÃO da investigação independente. Via Varejo S.A., São Caetano do Sul, 25 mar. 2020.
O perito, ao elaborar o seu relatório (parecer pericial contábil), deverá adotar os mesmos critérios utilizados na formulação de um laudo pericial contábil, mantendo a estrutura indicada na NBC TP 01 (BRASIL, 2015). Sua linguagem, durante a descrição dos fatos analisados, deverá ser simples, clara e objetiva, não se esquecendo de que o objetivo principal do trabalho é elucidar inconsistências contábeis.
Referências
BRASIL. Conselho Federal de Contabilidade. Norma Brasileira de Contabilidade: NBC TP 01 (R1) Perícia Contábil.
Brasília, DF: Conselho Federal de Contabilidade, 2015. Disponível em: https://bit.ly/2kXUT4l. Acesso em: 7 abr. 2022.
CONCLUSÃO da investigação independente. Via Varejo S.A., São Caetano do Sul, 25 mar. 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/2ptcdhrp. Acesso em: 1 maio 2022.
DOCUMENTOSCOPIA e grafotecnia. Associação Portuguesa de Ciências Forenses, [s. d.]. Disponível em: https://bit.ly/3L55hCB. Acesso em: 1 maio 2022.
EY FORENSICS ACADEMY. Investigações forenses: aula 10. Rio de Janeiro: UERJ, 2022.
SCATOLINI, L. Quase 8 milhões de brasileiros foram vítimas de fraudes no último ano. Agência Brasil, 22 nov. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3RVm3Gr. Acesso em: 1 maio 2022.