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Apresentaremos a importância do conhecimento do corpo e uma reflexão sobre como ele pode ser representado socialmente.
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Nesta unidade trataremos de algumas considerações relevantes que dizem respeito ao corpo, ao movimento e a seu espaço dentro do ambiente escolar. A necessidade de um olhar atento, crítico e reflexivo para o corpo e o movimento na escola se coloca há muito tempo dentro do contexto educacional. No cerne deste debate, a nossa atenção volta-se à seguinte indagação: estamos falando de qual concepção de corpo e movimento? Para pensarmos na prática pedagógica, precisamos ter clareza do embasamento teórico que a justifica, do contrário corremos o risco de cair em práticas mecânicas e irrefletidas, reproduzindo modelos de práticas escolares ultrapassadas.
Do ponto de vista das competências previstas para a unidade, espera-se que você compreenda as concepções teóricas que sustentam o debate sobre corpo e movimento, compreendendo e reconhecendo o espaço destes na escola, com a finalidade de apresentar análises críticas entre o que é proposto pelas teorias e documentos oficiais e a prática que se efetiva no ambiente escolar. Assim, nosso ponto de partida será conhecer as definições de corpo e movimento referenciadas nos currículos oficiais. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz, como um de seus campos de experiência, “corpo, gestos e movimentos”, fazendo com que o corpo da criança ganhe centralidade, constituindo-se em universo privilegiado de aprendizagem, permitindo-nos, assim, refletir sobre o contexto escolar e os espaços destinados para o corpo e o movimento, construindo uma reflexão crítica acerca do lugar que ocupam na estrutura da escola nos dias de hoje. Buscaremos, a partir dessas reflexões, localizar aproximações e distanciamentos que configuram a relação entre o que postulam os referenciais oficiais e as práticas efetivadas nos contextos escolares.
Para refletirmos sobre qualquer prática pedagógica, precisamos elucidar as concepções teóricas que a sustentam. Como bem postulado por Telma Weisz, “quando analisamos a prática pedagógica de qualquer professor vemos que, por trás de suas ações, há sempre um conjunto de ideias que as orienta. Mesmo quando ele não tem consciência dessas ideias, dessas concepções, dessas teorias, elas estão presentes” (WEISZ, 2009, p. 55).
Portanto, para elaborar uma reflexão sobre o corpo e o movimento na escola, é preciso compreender seus significados e concepções, bem como a história dessas ideias; pois é só a partir da explicitação da teoria que poderemos avançar nas reflexões sobre a prática. Sendo assim, vamos aprofundar um pouco mais a questão.
Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
[...] as práticas corporais devem ser abordadas como fenômeno cultural dinâmico, diversificado, pluridimensional, singular e contraditório. Desse modo, é possível assegurar aos alunos a (re)construção de um conjunto de conhecimentos que permitam ampliar sua consciência a respeito de seus movimentos e dos recursos para o cuidado de si e dos outros e desenvolver autonomia para apropriação e utilização da cultura corporal de movimento em diversas finalidades humanas, favorecendo sua participação de forma confiante e autoral na sociedade.
Mas será que nós, adultos, temos consciência dos nossos próprios limites e do nosso corpo? Afinal, o que é corpo?
Se perguntarmos a uma criança o que é corpo, talvez ela responda – com a maravilhosa simplicidade característica das crianças – que é tronco, braços, pernas e cabeça. Talvez nós mesmos pudéssemos resumir em uma resposta singela – um pouco mais rebuscada, como é característica dos adultos – que se trata da parte fisiológica do ser contrapondo-se à mente.
No entanto, apesar de essas definições modestas guardarem certa sabedoria instintiva e espontânea, elas nos levam a um espectro mais restrito do entendimento e das potencialidades do corpo. O aprofundamento na reflexão das representações e sentidos corporais nos possibilita a ampliação desse leque.
Não há uma concepção única de corpo. A compreensão de seus significados modificou-se ao longo do tempo e varia entre as diferentes culturas. Saber disso faz com que não caiamos no engano de julgamentos ou de padrões corporais, sobretudo no que se refere às discussões sobre corpos ideais.
Devemos entender que esses padrões se perpetuam em nossas práticas quando não refletimos sobre eles e quando encaramos o corpo como um tabu. Branco, negro, alto, baixo, gordo, magro, torto, esbelto, ágil, flexível, com deficiência, descoordenado, alongado, lento... Cada um com sua peculiaridade, com sua singularidade, com sua identidade. Todos com sua potencialidade, com sua expressividade.
Corpo é aquilo que nos constitui materialmente. Não existe o eu e o corpo. O corpo sou eu! O corpo é o que nos dá presença e é através dele que nos relacionamos com todas as coisas que existem. Em nossa cultura – prioritariamente cognitiva e mental – nos separamos do corpo e, muitas vezes, ele passa a ser um “estranho”. Ou, quando muito, um “suporte para a cabeça”.
Enxergar o corpo como uma construção cultural e validar seu potencial expressivo fará com que nós, professores, tenhamos maior unidade com nossos corpos e, por consequência, criemos condições para que as crianças também a tenham.
Imagine que você leciona para uma turma de crianças entre dois e três anos de idade. Com o objetivo de permitir a essas crianças explorar seus movimentos na busca de reconhecimento de suas potencialidades e limites, você propõe uma atividade em que elas são encorajadas a pular e saltar através de diversos obstáculos. Sua coordenadora, no entanto, orienta-o com relação à atividade proposta, explicando-lhe que esta oferece perigo para as crianças e que pode lhe causar problemas caso alguma delas se machuque.
Seu desafio consiste em mobilizar conhecimentos teóricos e práticos a fim de justificar à coordenadora a necessidade e a importância da atividade proposta.
Nesta seção procuraremos refletir sobre o conceito de corpo e suas representações socioculturais, bem como buscar um entendimento do corpo para além de um “aparato carregador de cabeça” – como muitas vezes tem sido encarado em nossa sociedade. Vamos lá!
Com base no senso comum, corpo é a parte material do ser, é a parte palpável da nossa existência; em última instância, é o que garante que nós estejamos vivos.
Paradoxalmente, é também sinônimo do que fica quando a vida se ausenta. Como diria a canção: “Tá lá o corpo estendido no chão” (DE FRENTE..., 1975). Corpo também significa a parte central ou principal de um trabalho: o “corpo do texto”, por exemplo. Indica, ainda, um conjunto de pessoas que atuam juntas: o “corpo docente”.
Considerando essa variedade de entendimentos, como você definiria o que é corpo?
Para aprofundarmos um pouco mais o entendimento do que vem a ser o corpo, vamos começar refletindo sobre sua etimologia:
O substantivo corpo vem do latim corpus e corporis, que são da mesma família de corpulência e incorporar. Dagognet (1992:5-10) explica que corpus sempre designou o corpo morto, o cadáver em oposição à alma ou anima. No entanto, no antigo dicionário indo-iraniano teria ainda uma raiz em krp que indicaria forma, sem qualquer separação como aquela proposta pela nomeação grega que usou soma para o corpo morto e demas para corpo vivo. É daí que parece nascer a divisão que atravessou séculos e culturas separando o material e o mental, o corpo morto e o corpo vivo. Neste sentido, a noção de corpo teria de ver também com sólido, tangível, sensível e sobretudo banhado pela luz, portanto visível e com forma. Como o corpo se compõe de muitos elementos acabou designando ainda tudo que está reunido como uma “corporação”. Assim, o corpo poderia ser entendido também como corpo de uma doutrina ou corpo da lógica. Já a carne ou carnal (em grego sarx e em latim caro) implicaria em keiro, do grego cortar, destacar, ”dividir a carne das bestas, os sacrifícios para refeição comum” (op. cit.). O que se percebe em todas essas nomeações é a necessidade de estabilizar algo em torno de um objeto para que este represente o que resiste ao que poderia ser desfeito – a solidez como espécie de solidariedade entre seus componentes, a coerência, a coesão e a figurabilidade ou a face própria de cada entendimento de corpo.
Podemos pensar, então, no corpo como um conjunto – ou um sistema – em que as partes estão interligadas para que todas as ações corporais sejam realizadas. Assim, quando pensamos no corpo em movimento, por exemplo, precisamos entender que todas as suas camadas estão implicadas nessa ação:
Para além da dimensão física, o corpo é também uma construção cultural – e sofre os efeitos de suas representações nas mais diversas sociedades.
O corpo traz toda nossa memória – nele nada é esquecido. Ele carrega as marcas de nossa família, de nossa religião, de nosso sistema político, enfim, de toda nossa ideologia. A sociedade codifica o corpo e as codificações do corpo codificam a sociedade. Cada cultura e cada época investem de modo diferente sobre os corpos, construindo normas e condutas que estão ligadas ao imaginário social que as tornam possíveis.
Não podemos, portanto, deixar de lado as representações socioculturais do corpo. Isso significa ponderar sobre que ideia de corpo prevalece em nosso contexto social, sobretudo se pensamos em um “corpo ideal”.
Leia a seguinte matéria da Revista Veja:
Como seria o corpo feminino ideal?
Com o objetivo de entender os padrões de beleza nos cinco continentes, uma rede de farmácias da Grã-Bretanha pediu para 18 designers alterarem uma imagem de acordo com o padrão de beleza de seu país.
[Uma] rede britânica de farmácias [...] quis entender os diferentes padrões de beleza ao redor do mundo. Para isso, criou o projeto Percepções da Perfeição (em tradução livre do inglês “Perceptions of Perfection“). O trabalho, elaborado por 18 designers de diferentes países dos cinco continentes, deveriam alterar a imagem de uma mulher com a ajuda do Photoshop, de acordo com os padrões de beleza de seu país.
“As percepções de beleza e de perfeição amplamente enraizadas podem ter um impacto cultural profundo e duradouro nas mulheres. O objetivo deste projeto é entender melhor esses padrões, a maioria potencialmente irreal”, disse a empresa em um comunicado.
Isabel Marques, bailarina e estudiosa da dança, relata as diversas compreensões de corpo que construiu ao longo de seu percurso, tanto como bailarina quanto como pesquisadora. O interessante é que ela foi construindo essas concepções ao mesmo tempo em que vivenciava diferentes experiências com seu próprio corpo.
Em um primeiro momento, quando praticava exclusivamente o balé clássico, ela o descrevia como “corpo instrumento”. Para tanto, ela citava depoimentos e memórias de bailarinos, bem como pesquisas de alguns estudiosos que trazem “exemplos desta concepção de corpo imposta pelo balé clássico e da pressão e da tortura corporal e psicológica por que são/foram obrigadas a passar milhões de mulheres para que pudessem ‘chegar lá’, no mundo da dança” (MARQUES, 2012, p. 116). A autora cita, ainda, o filme Cisne Negro, dirigido por Darren Aronofsky, como uma contribuição cinematográfica para essa discussão.
Embora não tenha vivido nada semelhante, minha paixão cega pelo balé clássico, incentivada por minhas professoras, quase me levou a tornar-me uma bailarina/pessoa dissociada de meu corpo físico enquanto corpo social.
Essa visão alinha-se à concepção de corpo como instrumento da dança, como meio, “máquina” para a produção artística. O corpo nessa concepção é algo a ser controlado, adestrado e aperfeiçoado, segundo padrões técnicos que exigem do dançarino uma adaptação e submissão corporal, emocional e mental àquilo que está sendo requerido dele externamente. É o dançarino sendo visto como “material humano”, como muitas vezes escutei de alguns de meus colegas da universidade ao se referirem aos alunos e às alunas.
Essa discussão avança para um debate da diferença entre possuir e ser um corpo, ou “entre um corpo que está comigo e um corpo que sou eu” (MARQUES, 2012, p. 117). Além disso, está diretamente relacionada com o tema do “corpo ideal” (no caso, para a dança clássica). No que se refere à educação, essa concepção de corpo leva ao aprimorar, controlar e vencer os limites físicos corporais; o foco é o ensino de técnicas e a alta performance – que pode ser constatado pelos inúmeros festivais e concursos de dança, nos quais o objetivo é ganhar troféus e medalhas.
Após um período de distanciamento da dança, Marques relata como se deu sua percepção de outra concepção de corpo, o “corpo natural”.
Regressando ao Brasil, ainda adolescente, logo busquei minha antiga academia para “entrar em forma” e continuar minha trajetória na dança, então sinônimo de balé clássico. O espelho já não respondia mais, achava-me horrível e desengonçada, meu corpo era outro (peso, forma, altura, flexibilidade). Naquela época, aconselhada pela orientadora de meu antigo colégio, descobri a expressão corporal, ou a “dança criativa”, ou o que chamam no Brasil (a meu ver erroneamente) de “método Laban”. Descobri em meu corpo o que muitos chamam de “liberdade de expressão”, “soltura”, “meu movimento natural”: podia rolar, cair, expandir, gritar, tocar os outros, sentir meu sangue correr nas veias. Descobri outro tipo de prazer ao dançar, um prazer que não estava atrelado ao masoquismo dos pés sangrando dentro das sapatilhas de ponta, mas ao contato com meu corpo físico tal qual ele era e estava.
Após anos de prática do que ela chama de “modalidades criativas de dança”, percebeu que “faltava algo”. Nesse período, mudou-se para Londres para cursar o Mestrado em Dança no Laban Centre. Dessa experiência, a autora destaca que o que a marcou foi uma observação de sua orientadora, a qual afirmou que ela “precisava viver mais ‘os pés sujos e o suor do corpo’” (MARQUES, 2012, p. 120). Mas, segundo ela mesma, o entendimento dessa ideia só viria anos depois: “obviamente ela utilizara estes exemplos como metáforas, e [...] não tinha nada a ver com o imundo local de ensaio na universidade ou com o calor que eu sentia nos ensaios nos meses de verão” (MARQUES, 2012, p. 123); tratava-se da “referência a um trabalho intelectual conectado ao corpo, ao trabalho de dança que conhece o ‘corpo inteligente’” (MARQUES, 2012, p. 120).
Depois do mestrado, Isabel Marques mergulhou mais no universo da educação. Durante muitos anos se dedicou à pesquisa e ao ensino do que, na época, chamava-se “dança-educação”. No entanto, paradoxalmente, foi um período de total abandono de seu próprio corpo. Só após o doutoramento, a autora se deu conta de sua própria contradição: “eu queria educar, mas não podia deixar meu corpo em segundo plano, pois ensinava justamente dança e já começava a perder a referência corporal com a minha arte” (MARQUES, 2012, p. 122).
Logo tive de enfrentar na prática meus próprios preconceitos em relação ao corpo que dança e ao corpo na dança. Compreendi no corpo que minha elaboração teórica sobre a “democracia do corpo” sugerida pelos dançarinos de 1960 não bastava para aceitar meu corpo dez anos mais velho, cheio de “vícios” dos anos sem trabalho específico de dança, com uma experiência artística que parecia extremamente longínqua (meu corpo não dava sinais de experiência). Durante quase um ano, só fui capaz de perceber e olhar para aquilo que não conseguia fazer; para os corpos hábeis, jovens, preparados (recém-saídos da universidade) de minhas ex-alunas, membros do nosso grupo; só conseguia administrar minhas frustrações por não ter o “corpo ideal” para voltar a dançar.
A sinceridade e a profundidade com que Marques analisou suas próprias dificuldades a levaram a uma nova compreensão de seu corpo: “nesse processo, dei-me conta realmente de como meu corpo havia sido socialmente construído pelo próprio mundo da dança e que eu ainda tinha certa ‘cabeça de bailarina’ quando me relacionava com meu próprio corpo” (MARQUES, 2012, p. 123). Ela constrói, então, uma nova concepção de corpo, baseando-se em Bordo (1993 apud MARQUES, 2012): “o corpo humano [é] nele mesmo uma entidade política inscrita, sendo sua fisiologia e morfologia formados por histórias e práticas de constrição e controle”. Para concluir, Marques afirma que “nosso corpo é o amálgama, um fluxo de cruzamentos de nosso gênero, etnia, faixa etária, crença espiritual, classe social” (MARQUES, 2012, p. 124).
Todo o percurso vivenciado e refletido por Isabel Marques, em sua trajetória como bailarina e pesquisadora da dança, fez com que a autora tivesse que pensar e repensar sua relação com o corpo e seus limites e potencialidades. No entanto, a própria autora destaca as possibilidades que temos, atualmente, de modificar o corpo com cirurgias, plásticas, transplantes. “Estamos falando hoje do ‘corpo pós-humano’ na medida em que o corpo físico não é mais um limite para o ser” (MARQUES, 2012, p. 125).
Que consequências essa nova realidade pode trazer para nossa compreensão de corpo?
Uma vez elucidadas as necessidades de compreensão do nosso corpo, da relação que estabelecemos com este e da nossa consciência acerca de seus limites e de suas potencialidades, buscaremos, agora, refletir acerca da criança e da relação que esta estabelece com seu corpo.
De acordo com a educadora Luiza Gaia (2016), “o corpo é o primeiro brinquedo da criança” (HUNGRIA, 2016, [s.p.]). O desenvolvimento da criança, desde a primeira infância, é estritamente ligado ao de seu corpo e, consequentemente, de sua corporalidade, seus limites e potencialidades.
Através do corpo a criança explora o universo que a circunda, se relaciona com os outros, com os espaços, e se desenvolve, numa relação mútua de conhecimento de si própria e dos ambientes em que se situa.
Sabemos que a atividade primeira da criança é o brincar, e seu corpo é, assim, seu primeiro brinquedo, visto que constitui seu instrumento de exploração do mundo. Os movimentos da criança e seu livre brincar são, assim, essenciais ao pleno desenvolvimento da criança desde a mais tenra idade.
No contexto educacional é responsabilidade de escolas e educadores valorizar a espontaneidade deste livre brincar com o próprio corpo, afastando-se de concepções que ligam essa relação à indisciplina e falta de controle.
A Base Nacional Comum Curricular aponta a necessidade de tratar as práticas corporais de modo a aproximar as crianças de um universo cultural complexo, incentivando a experimentação de diversas formas de expressão na escola:
Nas aulas, as práticas corporais devem ser abordadas como fenômeno cultural dinâmico, diversificado, pluridimensional, singular e contraditório. Desse modo, é possível assegurar aos alunos a (re)construção de um conjunto de conhecimentos que permitam ampliar sua consciência a respeito de seus movimentos e dos recursos para o cuidado de si e dos outros e desenvolver autonomia para apropriação e utilização da cultura corporal de movimento em diversas finalidades humanas, favorecendo sua participação de forma confiante e autoral na sociedade. É fundamental frisar que a Educação Física oferece uma série de possibilidades para enriquecer a experiência das crianças, jovens e adultos na Educação Básica, permitindo o acesso a um vasto universo cultural. Esse universo compreende saberes corporais, experiências estéticas, emotivas, lúdicas e agonistas, que se inscrevem, mas não se restringem, à racionalidade típica dos saberes científicos que, comumente, orienta as práticas pedagógicas na escola. Experimentar e analisar as diferentes formas de expressão que não se alicerçam apenas nessa racionalidade é uma das potencialidades desse componente na Educação Básica. Para além da vivência, a experiência efetiva das práticas corporais oportuniza aos alunos participar, de forma autônoma, em contextos de lazer e saúde.
A valorização e incentivo à relação criança-corpo possibilita o seu pleno desenvolvimento, a consciência de todas as suas possibilidades e o reconhecimento de seus limites. Sobre o corpo, a Base Nacional Comum Curricular aponta:
Com o corpo (por meio dos sentidos, gestos, movimentos impulsivos ou intencionais, coordenados ou espontâneos), as crianças, desde cedo, exploram o mundo, o espaço e os objetos do seu entorno, estabelecem relações, expressam-se, brincam e produzem conhecimentos sobre si, sobre o outro, sobre o universo social e cultural, tornando-se, progressivamente, conscientes dessa corporeidade.
Segundo o documento, o trabalho com o corpo na educação infantil deve pautar-se no desenvolvimento das diferentes linguagens, como a música, a dança, o teatro e as brincadeiras de faz de conta, uma vez que, por meio destas, as crianças se comunicam e se expressam no entrelaçamento entre corpo, emoção e linguagem.
Kátia Adair Agostinho realizou uma pesquisa etnográfica com crianças, com o objetivo de conhecer suas formas de participação na educação infantil e identificou a forma intensa e pulsante com que a criança participa com seu corpo nos diversos contextos educativos expressando seus pontos de vista. Leia o artigo O corpo como componente das formas de participação das crianças na educação infantil para saber mais.
AGOSTINHO, K. A. O corpo como componente das formas de participação das crianças na educação infantil. Pág. Educ., Montevideo, v. 12, n. 1, p. 120-133, 2019.
Para pensarmos no trabalho com o corpo com as crianças maiores, do Ensino Fundamental, nos basearemos no documento Direitos de Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e Autoral, da rede municipal de São Paulo, o qual atesta que:
Processos de ensino e aprendizagem que realmente compreendem e trabalham com a diversidade corporal – atravessados pelo corpo próprio e sensível – dizem respeito não somente à possibilidade e direito de todos dançarem diferentes repertórios de dança, mas, sobretudo, de compreender que cada corpo, próprio, singular – híbrido, multifacetado e mutável – gera danças também singulares, “diferentes”, próprias – autorais. Propor aos estudantes que conheçam, percebam, compreendam e escolham aquilo que seus corpos dançam, isto sim, é trabalhar com as diferenças corporais e, consequentemente, com a inclusão.
Em consonância com as concepções teóricas apresentadas anteriormente, esses referenciais apontam para a necessidade de se criar um espaço para que as crianças compreendam a singularidade dos corpos e seu potencial expressivo, em uma perspectiva que passa longe da ideia de um corpo que deve ser moldado para se enquadrar em um ideal.
Vimos nesta seção a importância de a criança conhecer e reconhecer seu corpo através de suas funções, gestos, movimentos e da identificação de suas potencialidades e do aprendizado sobre seus limites. A BNCC, sobre isso, nos informa:
Na Educação Infantil, o corpo das crianças ganha centralidade, pois ele é o partícipe privilegiado das práticas pedagógicas de cuidado físico, orientadas para a emancipação e a liberdade, e não para a submissão. Assim, a instituição escolar precisa promover oportunidades ricas para que as crianças possam, sempre animadas pelo espírito lúdico e na interação com seus pares, explorar e vivenciar um amplo repertório de movimentos, gestos, olhares, sons e mímicas com o corpo, para descobrir variados modos de ocupação e uso do espaço com o corpo.
Assim, em consonância com a BNCC, contemplamos competências referentes ao trabalho educativo comprometido com o desenvolvimento integral da criança, que toma para si seu corpo e o conhecimento deste, afastando-se de práticas escolares corporais atreladas à manutenção do controle do corpo e da disciplina.
Pina Bausch, coreógrafa alemã, realizou um projeto no qual uma mesma coreografia foi dançada por adolescentes e idosos. Parte desse trabalho pode ser visto no documentário Sonhos em Movimento (SONHOS..., 2010).
Conhecer nosso corpo, estabelecer relações saudáveis com ele, reconhecer seu potencial e suas limitações são prerrogativas para o estabelecimento de nossa consciência corporal e do modo como nos colocamos no mundo. Aprendemos nesta seção a importância dessas prerrogativas e ampliamos o conhecimento para nossa função educativa que, ao propiciar à criança a exploração do seu meio através de seu corpo, permite-lhe um desenvolvimento pleno e saudável, com a consciência de seus limites e suas potencialidades.
AGOSTINHO, K. A. O corpo como componente das formas de participação das crianças na educação infantil. Pág. Educ., Montevideo, v. 12, n. 1, p. 120-133, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2NZIknx . Acesso em: 30 abr. 2020.
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