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Ao longo da vida, a criança deve conquistar capacidades cognitivas, afetivas e orgânicas que serão constituidoras da sua psicomotricidade.
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A psicomotricidade busca compreender a relação do corpo do indivíduo como ferramenta de relação do mundo interno e externo. Portanto, essa área do conhecimento está profundamente relacionada com a capacidade expressiva do sujeito e a sua capacidade de compreender e modificar o seu entorno.
Para que a pessoa tenha a possibilidade de compreender o mundo objetiva e subjetivamente, é fundamental que ele conquiste, ao longo da sua vida, capacidades cognitivas, afetivas e orgânicas que serão constituidoras da sua psicomotricidade.
A infância é uma fase crucial para a formação adequada da psicomotricidade, em especial a primeira infância (de zero a seis anos). Nesta fase, o aprendizado sobre o mundo se dá sobretudo através do corpo, e a partir das experiências motoras a criança será capaz de constituir o seu intelecto, seu afeto, seus gestos e significâncias e sua expressão.
Você, como futuro pedagogo, tem como importante função assegurar que seus alunos possam desenvolver a psicomotricidade e utilizá-la para melhor se expressarem e compreenderem o mundo. Cidadãos que entendem a potencialidade de seu corpo têm maior capacidade de se expressar, de se relacionar e de transformar o mundo.
Nesta seção, estudaremos o que é psicomotricidade, quais são os conceitos e elementos que compõem essa prática, sua importância no contexto escolar e como o aluno se utiliza dela para realizar suas interações cognitivas, sensório-motoras e psíquicas.
Vamos também analisar como as seis funções que compõem a psicomotricidade – coordenação motora global, equilíbrio estático e dinâmico, esquema corporal, lateralidade, orientação espacial e orientação temporal – são imprescindíveis para que o estudante aprenda a ler e escrever.
Por último vamos entender a relação da psicomotricidade com o aprendizado de artes, ou seja, como a música, a dança, o teatro e as artes visuais podem auxiliar no amadurecimento da psicomotricidade infantil e, portanto, ajudar a criança a se expressar, a se mover, escrever e aprender.
O ano letivo começou há aproximadamente dois meses e as avaliações dos alunos já trazem mais informações do desenvolvimento e desempenho individual. Na turma do segundo ano do ensino fundamental os alunos já foram alfabetizados, e você, como professor, tem como missão avançar na leitura e escrita das crianças.
Analisando cada aluno individualmente você percebe que um novo estudante chamado Igor, que ingressou no início do ano, vem apresentando dificuldade de escrita. Por ele ter vindo de outra escola, você não tem certeza de como foi a estimulação psicomotora e o desenvolvimento da fala, leitura e escrita dessa criança de sete anos.
O que você pôde identificar é que ele comumente troca as letras “b” e “d”. Apesar de Igor conhecer as letras no geral, ele apresenta dificuldades em juntá-las para formar palavras. Essas constatações preocuparam, já que Igor em breve terá oito anos, e nessa fase é esperado que a criança já tenha desenvolvido tais habilidades.
Você pede uma reunião com os responsáveis de Igor para prospectar informações de como foi o processo de aprendizagem do aluno em sua antiga escola. Apesar de ainda não ter certas confirmações, partindo dos deficits de aprendizagem de Igor é possível levantar hipóteses sobre quais habilidades precisariam ser desenvolvidas para ele avançar na leitura e escrita, bem como métodos que auxiliarão Igor a fluir na alfabetização.
Partindo dos conhecimentos de motricidade debatidos ao longo desta seção, bem como de seu conhecimento como futuro pedagogo, quais são os deficits de Igor e como saná-los para que o aluno possa avançar na leitura e escrita?
O ser humano não é composto de mente e corpo. O ser humano é o próprio corpo. Então vamos entrar de corpo inteiro nos estudos da psicomotricidade!
A psicomotricidade é inerente a todo ser humano, mas, apesar de toda criança apresentar possibilidade de desenvolvimento psicomotor desde o nascimento, ele não dependerá apenas dos processos orgânicos, mas também sociais. A psicomotricidade se caracteriza por lançar mão do movimento para aprender informações mais complexas, inclusive intelectuais.
Há uma relação muito estreita entre a capacidade de aprender uma nova informação, seja ela motora ou intelectual, e os repertórios de movimento preestabelecidos. Um indivíduo que ao longo da vida esteve exposto a um vasto leque psicomotor provavelmente terá melhor capacidade de aprender novas informações.
Por meio dos movimentos a criança se relaciona e adquire conhecimento sobre o mundo e outras informações fundamentais para o seu desenvolvimento. De acordo com Wallon (1975), o ambiente é elemento fundamental para proporcionar a ela a interconexão neural para que a psicomotricidade se desenvolva. Por isso é possível afirmar que a inteligência é também produzida por experiências motoras integradas ao conhecimento do indivíduo.
No caso do recém-nascido, a insuficiência motora é evidente.
O recém-nascido, na nossa espécie, é um ser ainda longe de estar concluído. As suas insuficiências motoras, perceptivas e intelectuais testemunham-no. Se ele possui já todos os neurônios, de que poderá até nunca chegar a dispor, a maior parte deles não está ainda em estado de funcionar por falta de interconexões necessárias.
De acordo com Ambrósio (2011), seis funções compõem a psicomotricidade:
Piaget (1967) propõe em seus estudos degraus sucessivos de desenvolvimento da psicomotricidade.
Quadro 3.1 | Fases do desenvolvimento sensório-motor de acordo com Piaget (1967)
0 a 2 anos |
2 a 7 anos |
7 a 12 anos | A partir de 12 anos |
---|---|---|---|
Formação das primeiras estruturas sensório-motoras. Exploração da inteligência prática. |
Representação de imagens. Linguagem. Aprendizagem no que é real e concreto. |
Melhor cognição. Capacidade lógica. Noções de quantidade, peso, volume, tempo e espaço. |
Raciocínio sobre hipóteses. Raciocínio sobre hipóteses. Raciocínio hipotético-dedutivo. |
Fonte: elaborado pela autora.
É possível considerar três elementos que influenciam o desenvolvimento da psicomotricidade (FONSECA, 1991, apud AMBRÓSIO, 2011):
A Educação Física no Ensino Fundamental I e II é uma disciplina altamente focada no desenvolvimento psicomotor da criança. O professor dessa área deve explorar as práticas corporais em suas codificações e significações sociais, entendendo que o movimento humano sempre está relacionado com a cultura que o constitui.
Com as práticas corporais, o aluno deve ganhar instrumentos para que seja capaz de cuidar de si e dos outros, bem como desenvolver autonomia na apropriação cultural, e dessa forma ser capaz de ter uma atuação ampla na sociedade.
Para saber mais, leia a sessão 4.1.3 da BNCC (2017).
O desenvolvimento escolar infantil deve considerar a psicomotricidade como um caminho fundamental para que o aluno adquira capacidades motoras, intelectuais e cognitivas mais elaboradas. Por isso é fundamental que o professor proporcione aos seus alunos a possibilidade de experimentar e vivenciar novas descobertas motoras, sempre relacionando o movimento às relações com o outro e com o ambiente. Santi Maria (2012, p. 29) nos lembra que “[…] é relevante que o professor de Educação Infantil tenha conhecimento de que a criança atua no mundo por meio de movimentos e que o estímulo e experiências são importantes para o desenvolvimento corporal e maturidade socioemocional”.
Requisitos fundamentais para a progressão escolar, como a coordenação motora fina, o controle corporal, o tônus muscular, a coordenação global, a lateralidade e as orientações espaço-temporais são funções amadurecidas a partir do movimento e do desenvolvimento psicomotor. Todas essas capacidades constroem um conhecimento-base que possibilita a criança conhecer, interpretar, utilizar, valorizar e aperfeiçoar a realidade.
É durante a Educação Infantil que o desenvolvimento psicomotor é mais importante, tendo em vista que a ampliação da capacidade motora, junto com a compreensão desta ferramenta como interação e transformação do mundo, bem como capacitadora de compreender os códigos e representações do mundo, dão o suporte para toda a vida escolar e além do indivíduo.
Neste artigo científico, os autores analisaram práticas pedagógicas psicomotoras em escolas de Educação Infantil, avaliando a importância da psicomotricidade para o desenvolvimento da criança. Para tanto, eles conheceram instituições e tentaram levantar as principais atividades executadas pelos professores, mesmo que a escola tivesse pouca infraestrutura ou acesso a materiais. Leia da página 132 até a 137.
NEGREIROS, F.; SOUSA, C. M.; MOURA, F. K. L. G. M. Psicomotricidade e práticas pedagógicas no contexto da Educação Infantil: uma etnografia escolar. Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 11, n. 1, jan./abr. 2018.
Ao perceber que o processo de aprendizagem é realizado com a totalidade do sujeito, ou seja, não apenas pelo intelecto, mas sobretudo pelo corpo e pelo gesto, trazemos para o centro a criança como indivíduo em sua completude, sem que hierarquizemos o intelecto em detrimento do corpo, afinal essa divisão não existe. A criança aprende por inteiro, a mente é o corpo e o corpo é a mente.
O corpo surge, portanto, mais uma vez, como o componente material do ser humano, que, por isso mesmo, contém o sentido concreto de todo o comportamento sócio-histórico da humanidade. O corpo não é, assim, o caixote da alma, mas o endereço da inteligência. O ser humano habita o mundo exterior pelo seu corpo, que surge como um componente espacial e existencial, corticalmente organizado, no qual e a partir do qual o ser humano concentra e dirige todas as suas experiências e vivências.
A escola deve ser, portanto, o local de desenvolvimento integral da criança, dando as bases corporais e cognitivas necessárias para uma experiência completa de aprendizado. O estudo do movimento e da expressão deve estimular a compreensão por parte da criança de que seu corpo é ela mesma, e não apenas um instrumento, uma ferramenta para executar atividades rotineiras. Quando a educação for pautada no respeito ao corpo, esses corpos consequentemente pedirão por educação, e não apenas adestramento.
O aprendizado da alfabetização envolve processos de codificação, decodificação, percepção e memória. Sobretudo, o ato de ler e escrever demanda desenvolvimento da cognição e compreensão de códigos. É importante ressaltar que a preparação da criança para tal abstração não se dá no momento em que ela pega o lápis e papel em mãos; o processo se inicia muito antes, pelo desenvolvimento psicomotor que vai usar do corpo para construir significações e simbologias, além da motricidade fina e direções fundamentais para a escrita acontecer. Para Oliveira (2010, p. 182 apud AMBRÓSIO, 2011, p. 11), “[…] a psicomotricidade contribui para o processo de alfabetização à medida que proporciona à criança as condições necessárias para um bom desempenho escolar através da livre expressão e […] deve começar antes mesmo que a criança pegue um lápis na mão”.
O esquema corporal, um fator da psicomotricidade, é fundamental para estruturar a personalidade e a noção do corpo do indivíduo e para ele se reconhecer como ser social. Sem tais descobertas não é possível chegar à manipulação do lápis para escrever. A estrutura espaço-temporal, que é também desenvolvida junto com o esquema corporal, auxilia na conquista de esquemas dinâmicos e integração visomotora, que é a coordenação entre os olhos e as mãos.
A lateralidade é desenvolvida por meio da psicomotricidade e do trabalho com o movimento, mas também é fundamental para a capacidade de escrita da criança. Sem a lateralidade a direção da grafia fica comprometida, e o aluno pode apresentar lentidão ao escrever e, ainda, a inversão de letras.
A noção temporal é responsável por dois conceitos importantes. O primeiro é a organização de acontecimentos, ou seja, eventos que vem antes, durante e depois, com seus devidos intervalos de tempo, e o segundo é a noção rítmica. Ambas as funções são fundamentais para a escrita, que demanda organização e regularidade para acontecer.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil – RCNEI (BRASIL,1998) alerta que para a criança o movimento não é somente mexer o corpo, mas um meio pelo qual ela se expressa e se comunica com o mundo. Por isso é fundamental lembrar que a arte promove a exploração dos movimentos, fomentando a sensibilidade e o valor expressivo dos gestos.
Com a dança é possível aprimorar e refinar as capacidades motoras das crianças, por meio de atividades que exploram os gestos rápidos e lentos, fortes e fracos, circulares ou lineares, entre outros. Utilizando-se de práticas que intencionam o controle dos movimentos e ampliação da consciência corporal, a criança pode “progressivamente, utilizar o corpo como fonte de investigação criativa do mundo e de si mesma, de suas ideias e emoções, explorando as formas de expressão corporal presentes no seu social e em outros grupos” (ALMEIDA, 2016, p. 30).
O aprendizado da arte, além de ampliar o repertório motor e criatividade da criança, pode ser uma fonte de autoconhecimento que dá ferramentas para o indivíduo utilizar o seu próprio corpo com maior inteligência e autonomia. A percepção do movimento enquanto fonte de prazer desperta na criança sensibilidades e condições para desenvolver mais empatia e sociabilidade. Conhecer as potencialidades do corpo fomenta relações melhores e mais responsáveis consigo, com o outro e com o ambiente.
Essas justificativas aparecem em diversos documentos de orientação para a educação infantil, como o Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI). No BNCC (BRASIL, 2017) o campo de experiência “Corpo, gestos e movimentos” visa construir com o corpo relações da criança com a exploração do mundo, do espaço e dos objetos em seu entorno para produzir “conhecimentos sobre si, sobre o outro, sobre o universo social e cultural, tornando-se, progressivamente, conscientes dessa corporeidade.” (BRASIL, 2017, p. 36).
Aprender arte é aprender outras linguagens. Com tais conhecimentos as crianças ganham mais um recurso de comunicação, ampliando a capacidade de se relacionar com o outro e com o mundo. Se o ser humano é antes de mais nada um ser social, é possível afirmar que a arte não seria uma ferramenta que ajuda a analisar o mundo, ou que a dança seria um espelho da sociedade, mas, enquanto linguagem, enquanto comunicação, a arte é a própria ação sobre o mundo, sobre a sociedade e sobre as redes de relações. Conforme afirma Marques (2012, p. 58), “[...] o corpo em movimento não é veículo de expressão, ele é a própria expressão de seres humanos que buscam e constroem sentidos o tempo todo. Como já vimos, somos nossos corpos e neles – e não com eles – nos expressamos”.
A arte é composta de várias linguagens. São maneiras de o indivíduo se manifestar e se comunicar com expressões e gestos. Por isso a inclusão dessa linguagem no aprendizado escolar é uma maneira de fortalecer a presença do sujeito no mundo, assim como de ampliar sua compreensão, ação e capacidade transformadora do ambiente social.
A dança, a música, o teatro e as artes visuais, enquanto disciplina escolar, desenvolvem no aluno melhor capacidade de relacionar os aspectos funcionais e expressivos do movimento (MARQUES, 2012), resultado da aquisição de um novo sistema de signos pautados nos gestos, imagens e sons e que auxiliam na produção de significações e sentimentos da criança. A ludicidade é recurso fundamental para melhor trabalhar os repertórios motores e expressivos do estudante no contexto escolar.
O aprendizado de tais signos necessariamente passa pelo mover e pelo corpo. Os signos só são realmente aprendidos quando são vividos no corpo.
Com base no conhecimento do próprio corpo a criança constrói sua individualidade por meio da experimentação corporal, cria uma identidade por meio do estudo da cultura e da arte, amplia seu repertório de comunicação e linguagem para conquistar mais sensibilidade, empatia e socialização, aprende os cuidados de si pela exploração das potencialidades de movimento e entende seu papel social no mundo, percebendo como suas ações e criações podem ser veículo de transformação, e não apenas reprodução e adestramento.
A educação perpassa o ensinamento de corpos transformadores do mundo e, para tanto, inventar, explorar e experenciar são condições fundamentais para construir outros pontos de vista, outras formas de estar no mundo.
ALMEIDA, F. S. Que dança é essa? Uma proposta para a educação infantil. São Paulo: Summus/Pearson, 2016.
AMBRÓSIO, M. F. S. A psicomotricidade e a alfabetização de alunos do 2º ano do ensino fundamental. 2011. 79f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 2017.
FONSECA, V. Desenvolvimento psicomotor e aprendizagem. Porto Alegre: Artmed Editora, 2009.
LABAN, R. Domínio do movimento. 5. ed. Organização: Lisa Ullmann. Tradução: Anna Maria Barros De Vecchi e Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1978.
MARQUES, I. A. Interações: crianças, dança e escola. São Paulo: Blucher, 2012.
NEGREIROS, F.; SOUSA, C. M.; MOURA, F. K. L. G. M. Psicomotricidade e práticas pedagógicas no contexto da Educação Infantil: uma etnografia escolar. Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 11, n. 1, jan./abr. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2VcRpgN . Acesso em: 16 jun. 2020.
PIAGET, J. Seis Estudos de Psicologia. 24. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1967.
SANTI MARIA, T. L. C. Desenvolvimento psicomotor de alunos na Educação Infantil. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.
WALLON, H.-A. Psicologia e Educação da Infância. Tradução: Ana Rabaça. Lisboa: Editorial Estampa, 1975.