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Não pode faltar

Concepções de linguagem

Fabiana Claudia Viana Costa Dias

Identidade

Como a linguagem constrói nossa identidade?

Fonte: Shutterstock.

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convite ao estudo

Nesta unidade, você entrará no universo da linguagem e terá um primeiro contato com algumas definições importantes; reconhecerá as diversas manifestações orais, enquanto práticas sociais, e refletirá a respeito de como a linguagem identifica o sujeito.

O conhecimento da linguagem e da oralidade possibilitará a você uma reflexão a respeito das práticas de linguagem no cotidiano, nas interações face a face, por intermédio das diferentes mídias e nas práticas recorrentes na escola, seja pela relação professor/aluno, professor/instância de governança da educação ou professor/pais/família e comunidade. Assim, você conseguirá organizar práticas sociais de oralidade e reconhecer suas especificidades culturais e linguísticas por meio de diferentes mídias e suportes digitais.

Na primeira seção, você conhecerá as concepções de linguagem que sustentam as discussões sobre linguagem oral e linguagem escrita na atualidade. Esse conhecimento o auxiliará, de forma coerente, no direcionamento do trabalho em sala de aula, pois, se você considera que a linguagem é, por exemplo, um processo de interação, uma prática que supervaloriza a norma gramatical passa a ser contraditória. Além disso, esse modo de considerar a linguagem também nos permite pensar a respeito dos processos de identificação, de como o modo como falamos e escrevemos diz sobre nós.

As relações entre a oralidade e a escrita começarão a ser vistas na segunda seção desta unidade, tanto a “oposição” existente entre elas quanto a influência que a escrita sofre da oralidade. Uma das pretensões desta seção é desenvolver em você a capacidade de compreender a interface leitura/escrita a partir de momentos de expressão de sentimentos, ideias e criatividade para uma prática social interativa, bem como de construir caminhos teórico-práticos no processo de ensino e aprendizagem da oralidade, considerando diferentes mídias e suportes digitais para o desenvolvimento de habilidades orais de forma integral. Por isso, é aqui que você identificará como as chamadas novas mídias (redes sociais, blogs, podcasts, canais de vídeo e plataformas de EAD) utilizam os recursos orais, verbais e visuais a partir de diferentes gêneros discursivos em suas composições.

Todas essas questões serão ainda mais importantes quando discutirmos os diferentes usos da linguagem a partir das variedades linguísticas. Na terceira seção você aprenderá sobre os tipos de variedades que temos na língua e ao que elas estão condicionadas – idade, gênero, guetos, regiões geográficas etc.

Por dentro da BNCC

A BNCC apresenta dez competências gerais da educação básica e, entre elas, a competência quatro: “Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo” (BRASIL, 2017, p. 9).

Para atingir essa competência, professores precisam ter acesso às diferentes concepções de linguagem e entender que a linguagem constrói a identidade. Os alunos, por sua vez, precisam entender que a linguagem é um ato que acontece no social, dentro de contextos específicos, a partir do uso dos mais variados gêneros textuais.

O conhecimento das variedades linguísticas nos leva a entender que há diferentes modos de se falar e, com isso, combater o preconceito linguístico instalado em nossa sociedade. Desse modo, esta seção contribuirá para que você desenvolva a competência de identificar as variedades linguísticas e pensar em práticas educativas inclusivas, para as etapas da educação infantil e para os anos iniciais do ensino fundamental, que proporcionem o uso adequado dos diferentes gêneros orais sem preconceito linguístico.

Vamos lá?

Praticar para aprender

Vamos dar início à primeira seção desta unidade. Você vai compreender o papel da linguagem e, sobretudo, da oralidade na comunicação humana.

Atualmente, com o advento das novas mídias digitais, você já deve ter percebido que a linguagem toma as mais variadas formas: orais, escritas, imagéticas, em vídeos, mensagens de texto, áudios, memes, gifs. Diante dessa diversidade textual, o que é linguagem para você? Como podemos definir linguagem?

Uma das definições para linguagem é entendê-la enquanto representação do pensamento, mas considerá-la assim é pressupor que conseguimos traduzir em palavras aquilo que pensamos e que conseguimos organizar, por meio da fala ou da escrita, o que está em nosso campo das ideias. E o que acontece, então, quando não conseguimos expressar o nosso pensamento? Você acha que é possível controlar isso pela linguagem? Veremos nesta seção.

Outra definição, talvez a mais comum, é a linguagem como instrumento de comunicação. Pensar a linguagem enquanto instrumento é levar em conta que comunicar é a função primeira da linguagem, e se há comunicação, é porque há um emissor e um receptor que se revezam nesse processo. Como lidar, então, com os mal-entendidos causados pela linguagem em tantas situações de comunicação? Essa também é outra reflexão que desenvolveremos nesta seção.

A outra concepção de linguagem que vamos apresentar nesta seção é a linguagem enquanto processo de interação. Note que, nessa abordagem, a linguagem não se restringe a representar aquilo que pensamos e não é vista apenas como um instrumento do qual nos utilizamos para nos comunicar e passar uma mensagem com dada intenção. Considerar a linguagem enquanto interação é saber que a linguagem é ação, realiza coisas, produz efeitos sobre nós, sobre os outros e sobre o mundo.

Todas essas concepções perpassam, de alguma maneira, a construção da identidade, que será um dos pontos aqui discutidos. A linguagem tem relação direta com a identidade, e aqui refletiremos sobre como essa relação acontece.

Essas diferentes concepções de linguagem nos ajudam a entender o modo como a linguagem está em nós, como construímos o nosso dizer e como as “escolhas” linguísticas que fazemos em prol dos sentidos que desejamos atingir revelam muito sobre nós mesmos, identificando-nos.

Volte à lembrança dos múltiplos textos que circulam atualmente em nossa sociedade; a familiaridade que você tem na produção de alguns deles e a dificuldade em relação a outros revelam uma identificação que vai além de simples escolhas e, muitas vezes, evidenciam toda uma relação sua com o aprendizado desses textos. Essa é uma das exemplificações de como conduziremos a discussão de identidade construída pela linguagem.

Vamos pensar em uma situação-problema: você está participando de uma reunião pedagógica do segundo ano do Ensino Fundamental. Um professor relata uma prática pedagógica em que ele pede aos alunos que elaborem um registro oral de observação de um experimento científico realizado em sala para a troca de percepções e conhecimentos. Nesse relato, o professor afirma que os alunos não utilizam a linguagem oral de forma satisfatória, que se expressam mal e que precisam de mais atividades de reprodução de linguagem para melhorar o desempenho linguístico.

O que você identifica como problema nesse relato? Que concepção de linguagem você acha que embasa esse professor? Quais questionamentos você pode fazer ao professor para instigá-lo a refletir sobre a linguagem que as crianças utilizam? Quais contribuições você pode trazer para o relato apresentado?

Essas questões não precisam ser respondidas uma a uma necessariamente, mas são norteadoras, auxiliando-o na elaboração do seu percurso de reflexão sobre as concepções de linguagem.

Venha reconhecer as diversas concepções de linguagem e manifestações orais que permeiam as práticas sociais no seu discurso, seja pelas atividades linguageiras cotidianas ou pelas atividades produzidas na escola, nas mais diferentes situações de aprendizagem, e entender como se dá a relação da linguagem com os processos de identificação.

Bom estudo!

conceito-chave

Caro aluno, esta seção é o ponto de partida dos seus estudos sobre oralidade, já que conhecer e compreender um conceito tão importante para a sua prática pedagógica lhe dará acesso aos processos pelos quais os alunos usufruem da linguagem. Isso fará que você adote as estratégias e os recursos pedagógicos sustentados pelas ciências da educação que o auxiliarão no desenvolvimento dos saberes de forma coerente.

Um dos resultados de aprendizagem esperados para esta unidade é o reconhecimento das diversas concepções de linguagem e manifestações orais que permeiam as práticas sociais no seu discurso e prática. É importante que você tenha clareza quanto à concepção de linguagem que vai embasar seu trabalho na escola, pois ela deve estar alinhada a suas perspectivas e práticas, evitando, assim, incoerências entre sua teoria e sua prática pedagógica.

Vários autores contemporâneos apresentam concepções de linguagem, e três possibilidades de conceber a linguagem aparecem nos estudos da grande maioria deles: linguagem como forma de expressão do pensamento, linguagem como instrumento de comunicação e linguagem como forma de interação. Travaglia (2001), professor e pesquisador da Universidade Federal de Uberlândia, é um desses autores. Vamos, então, conhecer as concepções de linguagem.

LINGUAGEM COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO

A primeira concepção que vamos apresentar é a que considera a linguagem como expressão do pensamento. Travaglia (2001) afirma que adotar essa concepção é adotar também a ideia de que as pessoas não se expressam bem porque não pensam bem. Se você considera que a expressão se constrói no interior da mente e sua exteriorização é apenas uma tradução, você se embasa na linguagem como representação do pensamento.

Aceitar que a linguagem representa o pensamento, segundo o autor, é aceitar que a organização do pensamento de maneira lógica garante-nos a exteriorização desse pensamento de forma também organizada e adequada. Geraldi (2002a), outro pesquisador da linguagem e do ensino, segue com seus estudos na mesma direção e complementa que essa concepção é a que sustenta os estudos tradicionais, que reforçam a relação da impossibilidade de se expressar com o não pensar.

Assimile

Na concepção de linguagem como forma de expressão do pensamento, o sujeito é o senhor absoluto do seu dizer e precisa seguir à risca as regras da gramática normativa. A escrita é o modelo para o bem falar, e exercícios de repetição ajudariam nesse processo.

Perceba o quanto é arriscado você considerar a linguagem como expressão do pensamento. Partilhar dessa concepção é atribuir aos que “se expressam mal” um problema no seu próprio pensar, de modo que toda a responsabilidade sobre os dizeres recai naquele que diz, como se fosse um ato monológico, individual, que não é afetado pelo outro nem pela situação, explica-nos Travaglia (2001). Aqui, a produção do texto não tem relação alguma com o contexto em que ele é apresentado tampouco para quem ele é dirigido.

Para esses autores, o ensino tradicional que se sustenta na chamada gramática normativa, que traz as normas do bem falar e do bem escrever atreladas às normas do bem pensar, constrói-se a partir dessa concepção de linguagem.

LINGUAGEM COMO INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO

Outra maneira de se conceber a linguagem é pensá-la como instrumento de comunicação. Você já deve ter visto em etapas anteriores da sua educação – seja para estudar as chamadas funções de linguagem ou a teoria da comunicação – o esquema de comunicação desenvolvido pelo linguista russo Roman Jakobson, que trazia como partes constituintes da comunicação um receptor e um emissor, que transmite determinada mensagem por um canal específico, numa dada língua, sobre um referente qualquer. Esse esquema estrutural é o grande norteador dessa concepção que estamos apresentando.

Geraldi (2002a) defende que essa concepção considera a língua como um código, organizado por regras, a fim de que o emissor transmita uma mensagem ao receptor tendo como objetivo a comunicação. Perceba que, se há uma transmissão de informações, as regras precisam ser preestabelecidas, seguidas à risca, para que a comunicação se efetive. Por isso, complementa Travaglia (2001), esse código, que é a língua, deve ser conhecido pelos falantes, deve ser utilizado de maneira semelhante, pois se trata de um ato social.

Se para você a linguagem é instrumento de comunicação, então você considera a língua de forma isolada, sem levar em conta os interlocutores e a situação de uso, desconsiderando o falante no processo de produção da linguagem e separando o homem do contexto social (TRAVAGLIA, 2001).

Consegue perceber como é a língua o ponto central nessa concepção?

Assimile

A concepção de linguagem como instrumento de comunicação considera que a linguagem serve apenas para transmitir mensagens, sem levar em conta o contexto de sua produção, obedecendo a um esquema prévio de comunicação: alguém que fala algo, numa dada língua, para alguém que decodifica.

Quem considera que a linguagem não apenas verbaliza as nossas ideias nem apenas exterioriza o pensamento, e que o falante faz mais que usar a língua na produção da linguagem, transmitindo informações, pode identificar-se com a terceira concepção. Você entenderá, na terceira concepção, como a prática de linguagem é complexa, é ação, é o lugar da interação humana.

LINGUAGEM COMO INTERAÇÃO

Nessa concepção, a linguagem é forma de interação, e nós praticamos ações que são possíveis somente pela linguagem: firmamos compromissos e vínculos que, sem a fala, não se concretizam, reforça Geraldi (2002a). A linguagem é, então, lugar de interação humana, complementa, ainda, Travaglia (2001), e produz efeitos de sentidos entre os locutores. Várias são as ciências da linguagem que sustentam seus estudos nessa concepção, entre elas, a linguística textual, a análise da conversação, a análise do discurso e a semântica argumentativa.

Assimile

Na concepção de linguagem como forma de interação, a linguagem é interação humana no social. A linguagem é ação, e o contexto e a situação são levados em conta na produção de sentidos. O modo como a linguagem é articulada na fala ou na escrita produz sentidos sobre quem escreve, é fruto da identificação do sujeito com a língua. Não conseguimos desprender a linguagem de quem a utiliza.

Outro autor que também compartilha desse posicionamento é Maurizio Gnerre (2009); ele reafirma que a linguagem não serve apenas para veicular informações, mas que essa é apenas uma função entre outras.

Reflita

Você acha que práticas pedagógicas pautadas na concepção de linguagem como forma de interação, que não coloca a gramática normativa como ponto máximo de aprendizagem, conseguem promover um conhecimento da língua que dê conta das manifestações da linguagem no social?

Há, nas reflexões postas por esse autor, um ponto bastante importante: o poder da linguagem! “A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (GNERRE, 2009, p. 22). Essa afirmação clássica em seu livro Linguagem, escrita e poder, que será referência também em outras unidades deste livro, nos dá respaldo para dizer que a relação dos falantes com a linguagem não é mecânica, tampouco gratuita. As pessoas falam pelos mais variados propósitos, para serem ouvidas, exercer influência, e sempre haverá uma relação de “poder dizer” nos atos linguísticos.

Linguagem e relação de poder

Vamos exemplificar a relação de poder com um texto literário bastante pertinente. Você já ouviu falar de Guimarães Rosa? Trata-se de um grande escritor brasileiro que escreveu vários contos, romances e novelas. Um de seus contos mais conhecidos é o Famigerado, que faz parte de uma coletânea de contos do livro Pequenas estórias.

Esse conto narra a história de um jagunço que foi chamado de “famigerado” por um homem do governo. Sem entender o significado da palavra, o jagunço procurou uma pessoa instruída para ter certeza de que não se tratava de um xingamento. Ele mantinha o homem do governo preso e estava disposto a matá-lo, caso o sentido de famigerado fosse ofensivo. Percebendo a situação e o risco que corria o “refém”, o homem se utilizou de alguns dos sentidos possíveis para a palavra famigerado e revelou ser “célebre”, “notório”, “notável”. Essa revelação resultou na soltura do homem do governo, preservando-lhe a vida.

Você reparou que os sentidos não estão colados às palavras, mas dependem de seus usos e são determinados socio, histórico e ideologicamente? Orlandi (2013) afirma que as palavras podem ter vários sentidos — a explicação sobre famigerado no texto nos mostra isso —, mas o sentido único e literal é uma ilusão até necessária para produzirmos o nosso dizer.

Quando lemos o conto Famigerado de Guimarães Rosa, percebemos o poder da linguagem e reforçamos todas as reflexões propostas pelos autores citados (Gnerre, Geraldi, Travaglia) ao afirmarem o caráter interativo da linguagem. O conto ilustra bem o fato de a linguagem ser ação: com a linguagem, fazemos coisas, salvamos vidas, decretamos a morte de alguém, induzimos tomadas de decisões, algumas vezes irreversíveis.

Com base nas três concepções, você já deve ter entendido que linguagem é interação e pressupõe uma relação de poder. Para suas práticas pedagógicas, não dá para considerar a linguagem de forma reduzida, como transmissão de pensamento ou informação nem mera comunicação.

Exemplificando

Em uma atividade de planejamento e produção de legendas para álbuns, fotos ou ilustrações digitais ou impressas, com colaboração dos colegas e apoio do professor, que considera a linguagem forma de expressão do pensamento, qualquer sugestão de texto feita pelo aluno que fuja à norma padrão é considerada errada e precisa ser reformulada, geralmente pelo professor. Com isso, a identidade da criança vai se ajustando ao que é desejado e esperado pelo professor.

Quando a concepção de linguagem como instrumento de comunicação embasa a atividade de identificar e reproduzir textos de campanha de conscientização destinados ao público infantil, há um modelo a ser seguido, a fim de que a mensagem seja transmitida e toda a avaliação seja baseada no modelo predeterminado. A criança precisa identificar-se com o modelo imposto.

Em uma prática pedagógica sustentada pela concepção de linguagem como forma de interação, no momento da produção de cartazes e folhetos para a divulgação de eventos da escola ou da comunidade, a avaliação acontece a partir de critérios de adequado e inadequado, e não de certo ou errado, considerando-se o gênero textual, o contexto de produção e a circulação do cartaz ou folheto. A identidade dos alunos não é anulada em prol de regras linguísticas.

IDENTIDADE

Desde a primeira etapa da Educação Básica, que é a Educação Infantil, a interação se faz presente; as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil, DCNEI (BRASIL, 2009), em seu Artigo 9°, apresenta as interações e as brincadeiras como eixos estruturantes da Educação Infantil. A interação, nessa etapa, proporciona a aprendizagem e é um sinalizador para a elaboração das práticas pedagógicas, por isso é importante que você se aproprie de novos conhecimentos e novas experiências para aperfeiçoar seu exercício profissional.

Essa apropriação de conhecimento, assim como a apropriação da linguagem, acontece por meio da identidade. Como você pensa essa identidade? Por que nos identificamos com alguns sentidos e rejeitamos outros? Por que preferimos uns conteúdos curriculares a outros? Você acha que essas escolhas são da ordem da vontade? Que papel tem a escola na construção da identidade?

Agora, vamos refletir sobre como a linguagem constrói a identidade sem deixarmos de fora a influência da escola nesse processo. Tagliani (2011), por exemplo, afirma que a escola é um importante espaço para o desenvolvimento de habilidades, mas que nem sempre as capacidades previstas são desenvolvidas:

A busca por melhores condições de vida e cidadania leva os indivíduos a procurar, cada vez mais, qualificação e capacitação em diferentes aéreas do conhecimento. A principal forma de desenvolvimento de habilidades é o ingresso na escola. Porém, o que se percebe, principalmente com relação ao desenvolvimento de habilidades linguísticas, é que o indivíduo, após ingressar na escola, não desenvolve sua capacidade comunicativa e interacional de forma efetiva. (TAGLIANI, 2011, p. 47)

Autor da citação

Essa citação pode provocar em nós outras questões: por que uns falam de uma maneira e outros de outra? Por que uns aprendem as regras da língua e outros não, mesmo frequentando a escola?

Com base em um livro indispensável para discutirmos linguagem, Portos de passagem, de João Wanderley Geraldi (2002b), convidamos você a pensar na linguagem a partir do processo interlocutivo e, por conseguinte, do processo educacional. Já é sabido por você que os sujeitos se constituem pela linguagem e de maneiras distintas, e considerar essa premissa é poder afirmar, a partir desse autor, que a língua não está pronta, como uma ferramenta que o sujeito se apropria para interagir. Ao contrário, a interação reconstrói a língua e também os sujeitos.

Perceba que nem língua, nem sujeitos, nem sentidos estão prontos e acabados, mas são ressignificados pelos processos interlocutivos, em um contexto socio, histórico e ideológico, como vimos no conto de Guimarães Rosa ou como citado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil, que dão destaque para a interação como um dos eixos estruturantes para se pensar a criança na escola.

Foco na BNCC 

Ao conhecer as diferentes concepções de linguagem, você desenvolve a habilidade de analisar, de forma crítica, essas concepções que norteiam textos científicos atuais e documentos educacionais, bem como, consequentemente, atinge o resultado de aprendizagem que desenvolve a competência de reconhecer as diversas concepções de linguagem e manifestações orais que permeiam as práticas sociais no seu discurso. O estudo da linguagem como construção da identidade desenvolve em nós a habilidade de selecionarmos e promovermos práticas pedagógicas que promovam a aprendizagem dos alunos de forma inclusiva, significativa e colaborativa.

Chamamos sua atenção também para outro ponto que Geraldi (2002b) destaca: as interações são acontecimentos singulares, que ocorrem em contextos específicos e, por isso, sofrem os controles e as seleções impostas por esses contextos, ao mesmo tempo que produzem novos.

Outra autora que traz uma importante afirmação acerca da linguagem que podemos relacionar com o ensino é Orlandi (2013). Para ela, “[...] a linguagem não pode ser pensada apenas como conteúdo, mas como matéria estruturante do saber, dos sujeitos, dos sentidos” (ORLANDI, 2013, p. 267). Você pode verificar, a partir disso, que a linguagem está em tudo e é por meio da linguagem que todo o saber, todos os sujeitos participantes dos atos linguísticos na escola — professores, alunos, gestão, comunidade — e todos os sentidos se estruturam.

Para você compreender melhor o funcionamento da linguagem nessa perspectiva interacionista e perceber como a linguagem afeta a construção da identidade, relembre algumas situações em que “escolhemos” modos de falar, conteúdos e sentidos dentro de contextos específicos. Imagine alguns conflitos nas interações no contexto escolar. Para resolver esses conflitos, você se utiliza da linguagem, mas o modo como isso é feito depende de vários fatores que passam pela relação entre os sujeitos em situações específicas. Por exemplo: é um conflito gerado em uma reunião com a equipe gestora? É uma interação na brincadeira no parque da escola entre crianças de mesma faixa etária? É uma discordância na relação com pais ou a comunidade?

Perceba que todas essas situações hipotéticas que elencamos acontecem na escola, e isso é levado em consideração quando produzimos linguagem, ou seja, a instituição onde o dizer é produzido direciona o nosso dizer, determina, em certa medida, o que dizemos e como dizemos; trata-se de uma relação de poder. Como bem coloca Geraldi (2002b, p. 10): “se falar fosse simplesmente apropriar-se de um sistema de expressões pronto, entendendo-se a língua como um código disponível, não haveria construção de sentidos [...], se a cada fala construíssemos um sistema de expressões, não haveria história”.

Diante dessas colocações, não é possível pensar que a identidade linguística é uma mera questão de escolha do sujeito, tampouco algo fixo e estável. Assim, a construção da identidade linguística depende do que entendemos dos contextos em que os diálogos ocorrem, isto é, retomando o exemplo mostrado há pouco, o que criança, gestão, pais trazem de sentidos para nós determina o modo como produzimos o nosso dizer. Por exemplo, o que sabemos sobre escola, criança, limites e regras retorna na nossa fala quando buscamos solucionar conflitos no parque; o que sabemos sobre hierarquia, respeito, convívio social retorna no momento em que vamos esclarecer algo em uma reunião com a coordenação ou com os pais. Nós não controlamos totalmente essas escolhas, assim como elas não são neutras.

Se não há neutralidade no dizer e não escolhemos livremente o que dizemos, como a linguagem constrói a nossa identidade? Como a linguagem nos constitui? Para tentar responder a essas questões, apresentamos a autora Coracini (2007), que discute a linguagem numa outra perspectiva, também relevante para nós. Ela reforça que a linguagem nos constitui e diz, ainda, que é a linguagem que nos dá um lugar na sociedade. Podemos concluir que a linguagem constrói a nossa identidade pela língua que falamos, a língua com a qual nos identificamos, logo, a relação da linguagem com a língua é indissolúvel.

Se partimos do pressuposto de que a língua constrói identidade, é heterogênea e mutável, então o mesmo é válido para pensar a identidade: ela não é fixa, não é estável e é múltipla. Em relação a isso, Orlandi (1998) reforça que não há identidades fixas, pois a identidade se transforma; ela ainda acrescenta que identidade não se aprende, e a ação de corrigir o aluno em sala de aula intervém nos sentidos que esse aluno está produzindo e, consequentemente, na constituição de sua identidade.

Diante disso, como você se identifica com algo? Por que determinados sentidos soam familiares para você e outros não? Essa mesma autora explica que a identificação acontece pela memória de sentidos que temos:

Identificamo-nos com certas idéias, com certos assuntos, com certas afirmações porque temos a sensação de que elas “batem” com algo que temos em nós. Ora, este algo é o que chamamos de interdiscurso, o saber discursivo, a memória dos sentidos que foram-se constituindo em nossa relação com a linguagem. (ORLANDI, 1998, p. 206)

Autor da citação

Com base nas afirmações dessa autora, você pode começar a relacionar identidade com ensino, pensando a identidade linguística. O aluno que melhor se adapta à escola é aquele que se identifica com os conteúdos que a escola transmite, que se identifica com a língua formal, e essa visão ultrapassa os muros escolares. Você já deve ter ouvido vários julgamentos em relação ao modo de falar de alguém que está distante da chamada norma culta. Esses julgamentos vêm da ideia simplista de que quem não aprendeu, não se empenhou o suficiente para isso ou, absurdamente, não possui competência para aprender, como se a língua funcionasse sozinha, fora do sujeito que fala.

Caminhando para a conclusão dessas reflexões, retomamos duas autoras, Orlandi (2013) e Coracini (2007), já citadas nesta seção, que nos fazem repensar a função da linguagem em nosso cotidiano e o quanto a escola afeta nossa relação de identidade com a língua. Coracini (2007) atesta que a escola ensina formas, ensina uma língua que pouco tem a ver com o aluno, mas quer que ele a domine, silenciando ou anulando outras identidades; Orlandi (2013) sustenta que aquilo que o aluno não aprende, não faz sentido na história dele, está fora de seu discurso, apagado, silenciado, bem como acrescenta que é preciso conhecer a história do sujeito e da língua na produção do conhecimento do sujeito sobre a língua.

Nesta seção, você teve a oportunidade de conhecer as concepções de linguagem que permeiam os estudos linguísticos na atualidade. Teve acesso, também, ao modo como a linguagem se constitui e constitui os sujeitos falantes na relação com o social. Por fim, você pôde, ainda, refletir acerca da linguagem e de como a identidade linguística, por meio da língua, faz significar aqueles que a utilizam, dentro e fora da escola.

Faça valer a pena

Questão 1

As concepções de linguagem e de língua que os professores trazem precisam estar em consonância com a sua prática pedagógica; daí emerge toda a importância de se estudar as diferentes concepções de linguagem e de língua que temos na atualidade. Autores como Luiz Carlos Travaglia e João Wanderley Geraldi, entre outros, apresentam importantes discussões sobre o modo como a linguagem pode ser concebida e, consequentemente, trabalhada em sala de aula.

Considerando as concepções de linguagem discutidas por esses autores, associe as definições apresentadas na coluna A às respectivas concepções apresentadas na coluna B.

COLUNA A COLUNA B
I. Essa concepção de linguagem está contida na LDB n. 5692/71, que passa a nortear o ensino de LP a partir da década de 70. [...] Além disso, a linguagem é tomada como pronta e acabada, exterior ao indivíduo. A língua é estudada isolada do seu uso, sem considerar os interlocutores, a situação e o momento histórico. É uma visão de língua inseparável de sua forma. (DORETTO; BELOTI, 2011, p. 95) 1. Linguagem como forma de expressão do pensamento.
II. É na LDB n. 9394/96 que essa nova vertente se consolida e se oficializa. Esse documento não bane a gramática, o conhecimento das normas que regem a Língua Portuguesa, mas defende que haja condições para que todos os estudantes tenham oportunidade de aproximação e apropriação da norma culta da língua. (...). O indivíduo realiza ações, atua sobre o interlocutor. Considera-se os contextos social, histórico e ideológico. (DORETTO; BELOTI, 2011, p. 96) 2. Linguagem como instrumento de comunicação.
III. “[...] a linguagem está associada à constituição de um sujeito único, centro e controlador de todo o dizer [...]. Acreditamos que essa concepção não contemple todas as características da língua, pois está associada ao subjetivismo psicológico, que pressupõe um mundo criado a partir de uma consciência autônoma, de um único sujeito detentor de todo o conhecimento”. (DORETTO; BELOTI, 2011, p. 93) 3. Linguagem como forma de interação.

Tente novamente...

Correto!

A linguagem como forma de expressão do pensamento coloca o sujeito falante como o centro e controlador de todo o dizer, dono e detentor do conhecimento, por isso, “fala bem”; caso contrário, teria problemas em expressar-se.

A linguagem como instrumento de comunicação foi a grande descoberta dos anos 1970 para as práticas pedagógicas, ela supervaloriza a gramática normativa e considera a língua um objeto pronto e acabado, que serve de instrumento para transmissão de informações.

A linguagem como forma de interação despontou nos documentos oficiais a partir da década de 1990 e começou a questionar a supremacia da língua padrão, apesar de jamais abolir o seu ensino. É nesta concepção que a linguagem é considerada ação: pela interação entre os locutores.

Tente novamente...

Tente novamente...

Tente novamente...

Questão 2

Ao descrever a área de linguagens, a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 63), afirma que:

As atividades humanas realizam-se nas práticas sociais, mediadas por diferentes linguagens [...]. Por meio dessas práticas, as pessoas interagem consigo mesmas e com os outros, constituindo-se como sujeitos sociais. Nessas interações, estão imbricados conhecimentos, atitudes e valores culturais, morais e éticos.

Autor da citação

A afirmação trazida pela BNCC nos permite verificar que esse documento considera a linguagem como processo de interação. Partindo desse pressuposto e considerando as reflexões estudadas acerca da concepção de linguagem como processo de interação, avalie as afirmativas a seguir:

  1. A linguagem como interação humana pressupõe a transmissão de uma mensagem de um locutor a um receptor.
  2. Pela concepção interacionista a linguagem é ação e nos permite praticar coisas que só são possíveis por intermédio da própria linguagem.
  3. Para a concepção de linguagem como processo de interação, não somente quem fala é o responsável pelo sentido, mas também os interlocutores e o contexto da fala afetam os sentidos.
  4. A língua, na concepção de linguagem como processo de interação, é um código, com regras preestabelecidas que norteiam a comunicação humana.

Considerando o contexto apresentado, assinale a alternativa correta.

Correto!

A concepção de linguagem que trata da transmissão de mensagens ou que acredita ser a língua um código de regras preestabelecidas é a concepção de linguagem como instrumento de comunicação.

Já na concepção de linguagem como processo de interação, a linguagem é ação e ambos os locutores presentes na conversa, bem como todo o contexto envolvido afetam a produção dos sentidos.

Questão 3

Os documentos oficiais de educação trazem em seu bojo concepção de linguagem para direcionar todo o trabalho em sala de aula. A BNCC também propõe que a prática pedagógica, a partir das habilidades e competências, seja coerente com a concepção adotada por esse documento.

Com base nas concepções de linguagem, avalie as seguintes asserções e a relação proposta entre elas.

I. Uma das habilidades propostas pela BNCC para o ensino de Língua Portuguesa do 1° ao 5° ano é o planejamento de um texto que será produzido levando-se em consideração a situação comunicativa, os interlocutores, a finalidade do texto, onde esse texto irá circular, por qual meio e sua linguagem.

Essa habilidade está pautada na concepção de linguagem como instrumento de comunicação.

PORQUE

II. A concepção de linguagem como instrumento de comunicação pressupõe um emissor e receptor, a partir de regras da língua, com o objetivo de se comunicarem. Essa regra precisa ser de conhecimento de todos os envolvidos na comunicação para ser usada de forma semelhante, pois estamos falando de um ato social.

A respeito dessas asserções, assinale a alternativa correta.

Correto!

A habilidade descrita na BNCC para o ensino de Língua Portuguesa do 1° ao 5° ano pressupõe a concepção de linguagem como processo de interação. Mais do que transmitir informações, a habilidade leva em consideração a situação comunicativa, os interlocutores, o objetivo do texto e onde ele será circulado, ou seja, mais do que regras a serem seguidas, há relações de linguagem que afetam o modo como o texto é produzido.

A asserção II expõe o que é a concepção de linguagem como instrumento de comunicação, o que contrapõe às ideias postas pela habilidade na BNCC.

referências

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2HCQtyn. Acesso em: 19 jun. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF, 2009. Disponível em: https://bit.ly/3e0pWXQ. Acesso em: 20 jun. 2020.

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