Relação entre oralidade e escrita
Se as modalidades escrita e falada são práticas sociais de linguagem, então por que a escrita prevalece nas atividades escolares?

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praticar para aprender
Caro aluno, nesta disciplina, você já entendeu o funcionamento da linguagem, conhecendo as concepções existentes e verificando como a linguagem e a identidade estão interligadas e, por conseguinte, o modo como falamos evidenciam quem somos e como nos significamos.
A língua não está pronta, acabada e, tampouco, funcionando igual para todos; ao contrário, é heterogênea, marca identidade e tem relação com os contextos de uso. E, assim, é a relação da linguagem com a sociedade e é a partir dessa relação que nos constituímos como falantes.
Nesta seção, você compreenderá que há uma pluralidade de interpretações e que ela independe da vontade do autor do texto, bem como não se restringe a textos literários, mas é resultante do processo de leitura e interpretação. Assim, também a oralidade e a escrita se constituem; o modo como falamos e como escrevemos é apenas uma das maneiras possíveis de formular o dizer, e isso nos permite afirmar que os dizeres não dependem apenas da estrutura linguística, mas do exterior à língua: o contexto, os interlocutores, o objetivo e o meio de circulação.
Considerar a linguagem por esse prisma permite que você reconheça as manifestações orais e escritas que permeiam as práticas sociais e construa subsídios para elaborar práticas educativas que possibilitem diferentes manifestações orais – e escritas – a partir dos diferentes contextos, tanto para a educação infantil quanto para os anos iniciais do ensino fundamental. Dessa forma, você analisará as situações comunicativas diversas e refletirá sobre o emprego da linguagem nas variadas situações de uso.
Vamos para mais uma situação-problema? Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine que você é professor de uma turma de quarto ano do ensino fundamental. Essa turma é bastante heterogênea, e as crianças são bem falantes, chegam todos os dias narrando os acontecimentos da sua rua e do bairro. Em um desses relatos, uma aluna conta que a rua de sua casa está bastante esburacada e que todos os dias ela passa por esses buracos, o que dificulta a sua locomoção para a escola.
Sabemos que os alunos trazem relatos e informações importantes para o cotidiano da escola e oferecem subsídios para a elaboração de práticas contextualizadas, tanto em relação aos interesses dos alunos quanto aos interesses da comunidade em que a escola está inserida. Diante dessa contextualização, elabore uma proposta pedagógica que procure considerar práticas de linguagem que permitam a discussão sobre os problemas cotidianos, pautada em argumentos que se sustentam pela leitura. Selecione gêneros textuais, impressos ou digitais, que circulem na vida pública, tanto para a leitura quanto para a produção de texto escrito, e sejam capazes de resolver problemas sociais. Seja criativo e original.
Reflita
Para quem o aluno escreve na escola? O professor é o único interlocutor do texto do aluno?
Você já se deu conta dessa mudança nos gestos de leitura? Já releu um texto e percebeu que os sentidos produzidos eram outros?
Aprimore o seu conhecimento, conheça conceitos e conteúdos da área de Linguagens e autodesenvolva-se para aperfeiçoar a sua prática futura de professor.
Bom trabalho!
conceito-chave
Nesta seção, você refletirá sobre a oralidade enquanto prática social e entenderá que a linguagem está diretamente ligada à sociedade e que só funciona por essa relação. Se é assim que a linguagem se constitui, o professor precisa estar ciente das situações comunicativas em que a oralidade é praticada e oferecer uma variedade de gêneros textuais orais, produzidos nas mais variadas situações de uso, por exemplo, na sala de aula, com seminários e debates ou apresentação cultural. Estudamos a oralidade em separado, por fins didáticos, mas a oralidade, a leitura e a escrita são práticas sociais que precisam ser ensinadas na escola.
A linguagem na escola precisa ser pensada a partir de práticas de oralidade, leitura e escrita significativas para a vivência social dos alunos, daí a importância de você conhecer a realidade da escola e da comunidade na qual ela está inserida e elaborar suas práticas considerando os contextos sociais, culturais, econômicos e políticos da instituição em que você atua, pensando em situações de discussões orais sobre demandas do bairro, reivindicações com órgãos responsáveis e debates sobre as necessidades emergenciais dos moradores.
Entende o quanto os mais variados gêneros textuais são indispensáveis para o trabalho com leitura e escrita na escola (e para além dela)? São eles que possibilitam a contextualização sócio-histórica. Perceba que a contextualização aqui falada não se restringe aos textos de que os alunos gostam, tampouco os que eles usam no dia a dia. A escola tem a função de ir além e oferecer aos alunos uma gama de textos que circulam no social, de produzir o entendimento de como esses textos funcionam, como são elaborados e onde circulam. Daí a importância de trabalhar com gêneros orais públicos, como as entrevistas, os diálogos travados em estabelecimentos comerciais, etc.
Desde as primeiras páginas deste livro, partimos da premissa de que a língua marca a nossa identidade enquanto pertencentes a um grupo, a uma sociedade. Você deve se lembrar que a língua não chega a todos da mesma maneira. Para uns, chega por uma via mais formal, mais próxima daquilo que se julga “correto” e bem falar; para outros, a formalidade só é acessível pela escola, e uma variedade desprestigiada é a que acompanha o sujeito no cotidiano. Vale, neste momento, reler as discussões propostas por Coracini (2007), já apresentadas nesta disciplina, para reforçarmos a discussão sobre como uma língua, aparentemente tão homogênea e familiar em uma sociedade, atravessa os falantes de maneiras tão distintas.
Ainda preparando o terreno para discutirmos a oralidade, a escrita e a leitura como práticas sociais, trazemos Benveniste (2006) para dizer que a sociedade só se torna significante na/pela língua, a qual produz sentidos devido à sua estrutura, composta de signos, unidades numerosas de sentido, que se combinam por um código, aumentando, cada vez mais, o número de enunciações. Segundo o autor, a língua é o instrumento necessário para descrever, conceitualizar e interpretar a sociedade; ela fornece ao falante a estrutura formal, o instrumento linguístico que permite o exercício da fala e o funcionamento subjetivo e referencial do discurso. O que podemos apreender desse estudo clássico da década de 1970 desenvolvido pelo linguista Benveniste? Que a língua é considerada um sistema formal e que é um caminho fértil para pensarmos a sociedade.
Assimile
O linguista francês, chamado Émile Benveniste (2006), elaborou um sólido estudo sobre a relação da linguagem com a sociedade, na década de 1970. Ele diz que só há linguagem porque há sociedade, e só há sociedade porque há linguagem. Para ele, a língua é prática humana.
Conhecer a realidade da escola e da comunidade na qual ela está inserida permite a você responder aos questionamentos: quais são as vivências dessas crianças? Esta prática que estou propondo contribuirá para o desenvolvimento dessas crianças? É uma prática significativa para a aprendizagem dos meus alunos? Esses questionamentos devem sempre permear o seu planejamento pedagógico, para que o trabalho em sala de aula seja coerente com o universo social dos seus alunos.
Se consideramos a língua na sua relação com a sociedade, enquanto prática social, precisamos pensar a linguagem dentro desse processo. Para produzir linguagem, usufruímos da língua nas mais diferentes formas e, nesta seção, pensaremos nas diversas manifestações de linguagem: oral, escrita, pela prática da leitura, circulando pelos meios impressos e digitais. Nesse sentido, a escola precisa abarcar diferentes saberes, sob os variados temas, pelas diferentes construções textuais.
Refletiremos sobre a oralidade, a leitura e a escrita como práticas sociais? Retomando nossas discussões sobre a oralidade, trazemos o autor Marcuschi (2010), quando diz que a oralidade não vai desaparecer e ela é, assim como a escrita, meio de expressão e de atividade comunicativa. A oralidade nos constitui como humanos e constrói a nossa identidade social, regional e de grupos. Perceba que, enquanto prática social, ela possibilita a organização textual em diversas situações e, assim, a escola vai evidenciando essas organizações. Outro ponto relevante que pode ser extraído das diferentes organizações textuais são as análises linguísticas desses textos, proporcionando reflexões sobre o modo como são produzidos, em quais contextos e para quais finalidades.
Essas reflexões afastam o embate entre oralidade e escrita, enquanto dicotomias, oposições. Para além dessa disputa, precisamos considerar a oralidade, a escrita e a leitura pelas práticas pedagógicas como espaços para argumentar, expor ideias, ouvir o outro e contra-argumentar. Falamos para sermos ouvidos, escrevemos para sermos lidos, na maioria das vezes.
Pesquise mais
Para saber mais sobre leitura, leia o texto de Rosemar Eurico Coenga, Ensino de leitura: algumas provocações, disponível na Biblioteca Virtual. Neste texto, a autora apresenta importantes reflexões acerca da leitura, baseadas em grandes pesquisadores desta área.
- COENGA, R. E. Ensino de leitura: algumas provocações. Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas, Londrina, v. 15, número especial, p. 351-355, dez. 2014.
Os autores Joicy Mara Rezende Rolindo e Francisco Edílson de Souza expõem uma reflexão sobre a relação da leitura com a escrita, de modo a não as considerar como dicotômicas, mas analisando o modo como uma influencia a outra.
- ROLINDO, J. M. R.; SOUZA, F. E. Leitura/escritura: um processo de construção de sentido. Revista de Educação, v. 11, n. 12, p. 26-83, 2008.
Para as atividades de oralidade, precisamos insistir na variedade de gêneros textuais que possibilitam mostrar que as variedades linguísticas existem tanto na oralidade quanto na escrita; isso pode ser exemplificado com textos de formulações mais formais, como palestras, aulas, algumas entrevistas (percebe que esses gêneros podem, também, ser informais? Lembra-se do “relativamente estável” na definição de gênero de Bakhtin?) ou textos com menos formalidades, como podcasts, lives e áudios de redes sociais, os quais, dependendo do interlocutor, podem ser também formais. Essas repetições “deslocadas” dos textos nos permitem recorrer a Geraldi (2002, p. 10): “se falar fosse simplesmente apropriar-se de um sistema de expressões pronto, entendendo-se a língua como um código disponível, não haveria construção de sentidos; (...) se a cada fala construíssemos um sistema de expressões não haveria história”.
Castilho (2016) acrescenta que as práticas de oralidade acontecem na presença dos interlocutores, e isso interfere diretamente na organização e na execução da fala, tudo o que “entra” no texto, no momento da sua elaboração, nele permanece. Já a escrita, depois de pronta, pouco se interfere em sua organização: quem escreve pressupõe quem lê e quem lê não acompanha as estratégias de preparação do texto, as correções, as retomadas. Assim, segundo o autor, a língua falada permite uma inspeção privilegiada, e o interlocutor é quase um coautor do texto, que se forma na interação. Perceba, nessa fala, que ele não coloca oralidade e escrita enquanto díspares, mas aponta as diferenças em seu funcionamento e na relação entre os locutores.
Na relação da oralidade com a escrita, enquanto práticas sociais, Marcuschi (2001) diz que é importante partir da oralidade para a escrita, ressaltando as diferenças e as semelhanças entre elas. Para o autor, a escola tem como papel ensinar o domínio dessas duas modalidades em diferentes níveis. Entenda que, na sala de aula, há um movimento para essa sequência no ensino, isto é, partir da oralidade para a escrita. Você deve verificar que essa é uma estratégia válida, considerando que as crianças chegam à escola falando, interagindo e disputando ideias e espaços, seja por meio da reelaboração de regras em um jogo ou da reivindicação de uma posição na brincadeira, por exemplo. O que você precisa atentar, ainda, é em não extinguir as práticas de oralidade planejadas na escola, pois a oralidade é um objeto de ensino, conforme já discutimos.
Assim como a oralidade, a escrita também é objeto de ensino na escola. Falamos e escrevemos de maneiras distintas e ambas as modalidades são práticas sociais de linguagem, então por que a escrita prevalece nas atividades de sala em detrimento da oralidade? A oralidade, nos diz Orlandi (2013, p. 262), ocupa as práticas marginais frente à ideologia dominante da escrita. A autora afirma que “mesmo quando pensamos estar na oralidade, estamos na oralização da escrita”, e o que falamos já tem a forma material da escrita. Isso você pode perceber pelas exigências da maioria dos gêneros textuais orais, os quais exigem uma variedade que é mais recorrente na escrita. Você não pode esquecer que a escrita e a oralidade não são opostas, mas se estabelecem e funcionam de forma distintas e provocam diferentes entendimentos.
Marcuschi (2010) reforça que a escrita é um bem essencial à própria sobrevivência e reflete sua imposição nas sociedades modernas. Leia a citação dele a seguir:
Numa sociedade como a nossa, a escrita, enquanto manifestação formal dos diversos tipos de letramento, é mais do que uma tecnologia. Ela se tornou um bem social indispensável para enfrentar o dia a dia, seja nos centros urbanos ou na zona rural. Neste sentido, pode ser vista como essencial à própria sobrevivência no mundo moderno. Não por virtudes que lhe são imanentes, mas pela forma como se impôs e a violência com que penetrou nas sociedades modernas e impregnou as culturas de um modo geral. Por isso, friso que ela se tornou indispensável, ou seja, sua prática e avaliação social a elevaram a um status mais alto, chegando a simbolizar a educação, desenvolvimento e poder. (MARCUSCHI, 2010, p. 16-17)
REFLEXÕES SOBRE A ESCRITA
Essa colocação do autor contribui para refletirmos sobre a soberania da escrita nas práticas pedagógicas, nos instrumentos de avaliação e no modo de julgamento social. Assim, você pode relacionar esse posicionamento à relação de poder que sustenta a linguagem, sobretudo a linguagem escrita. E, seguindo nas reflexões do autor, a escrita sustenta todas as nossas práticas sociais, e todos os pertencentes de uma sociedade dependem dela, em maior ou menor medida.
Entenda que, ao olharmos para a aquisição da linguagem escrita de maneira crítica, percebemos que escrever não é um ato mecânico, que se origina da vontade do escrevente. Quantas vezes você precisou escrever algo, seja no trabalho, seja no estudo, e teve a impressão de que as palavras “fugiam” do seu texto? Quantas vezes não temos a ideia do que vamos escrever, mas, no momento da produção da escrita, as formulações teimam em sair? Se fosse um ato mecânico, resultante do nosso conhecimento sobre a língua e do nosso desejo, bastaria nos sentar para escrever que as palavras preencheriam a folha em branco ou a tela, no entanto sabemos que não é bem assim, que a linguagem não é mera representação do pensamento, como observamos na primeira unidade.
Sobre a escrita não ser um ato mecânico, a pesquisadora Jauranice Rodrigues Cavalcanti, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, registrou seus estudos no livro Professor, leitura e escrita e apresentou uma entrevista de Graciliano Ramos, o autor de Vidas Secas, sobre a escrita, realizada em 1948, em que ele diz:
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita pra dizer. (CAVALCANTI, 2015, p. 86)
Graciliano Ramos atenta para a importância da escrita planejada, revisitada, reescrita. O nosso retorno ao texto é imprescindível para que a escrita final tenha o resultado que esperamos. Isso é um exercício que precisa ser desenvolvido na escola, como prática recorrente na escrita, colocar-se de fora do texto para olhá-lo de maneira crítica e fazer correções necessárias. Cavalcanti (2015) acrescenta que essa comparação que Graciliano Ramos faz entre o ofício das lavadeiras e o ato de escrever evidencia que a escrita não é automática, mas um trabalho que requer etapas, de idas e vindas, no esfregar, torcer e enxaguar das palavras.
A escrita é um trabalho, isso você não tem dúvidas, e, muitas vezes, constitui um dos grandes desafios da escola. Vários pesquisadores apontam para a importância da refação de um texto, do retorno crítico para uma elaboração, seja qual for o ano escolar, e é por essa perspectiva que você pode pensar as práticas escolares, estimulando a revisão e a edição da escrita das crianças por elas mesmas.
Essa prática de escrita, nos diferentes anos iniciais, pode ser exercida a partir da escrita de textos que circulam no social e com os quais as crianças se deparam, por exemplo, avisos, convites, agendas, calendários, legendas para álbuns, manchetes em notícias, listas de regras, anúncios, slogans, cartazes para divulgação de eventos na escola, circulados em meio impresso ou digital, etc. Perceba quantos gêneros textuais com função social os alunos podem produzir na sala de aula, textos que permitem a discussão sobre a linguagem e sua utilização nas mais variadas situações de uso.
Toda a prática de escrita pode ser antecedida pela discussão oral após a leitura de textos de diversos formatos e temas. A leitura é, também, uma prática social. Antes de falarmos sobre leitura, leia um trecho do poema de João Cabral de Melo Neto a seguir, intitulado Catar feijão. Esse poema foi escolhido para encerrar a breve discussão sobre a escrita enquanto prática social, a fim de ilustrar, de maneira metafórica, o trabalho da escrita, desde a “escolha” das palavras, a retirada “das pedras”, até o “cozimento” final do texto. No poema, o autor nos provoca, ainda, a pensar sobre os grãos pesados que insistem em permanecer no texto. É comum finalizarmos um texto e ainda nos depararmos com palavras que poderiam ter sido alteradas, os grãos pesados. Cada leitura para reescrita de um texto é quase uma nova produção desse texto. Mas, o poema mostra que nem sempre esses grãos pesados da escrita criam dissabores ao texto, mas “quanto ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com o risco” (MELO NETO, 1997, p. 16-17). Qual risco? O risco da pedra? O risco no papel? O risco da escrita? Escrever é um risco! Sinta o poema:
Catar feijão
[...]
Ora, nesse catar feijão, entra um risco:
o de entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quanto ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
Poema instigante, não? Ler é gesto de interpretação, atribuir sentidos ao que é lido. Perceba que o sentido não é dado, pronto, mas construído, frente a inúmeras condições, que vão além da estrutura linguística, ou seja, não são somente as palavras que ditam os sentidos, e isso pode ser verificado pela interpretação do poema lido. Foi apresentada uma interpretação dentre tantas outras possíveis e que, provavelmente, você construiu. Essa multiplicidade de sentidos não é privilégio das leituras de textos literários, mas de todos os textos com os quais nos deparamos em nosso cotidiano, um anúncio, um bilhete, uma propaganda, um informe, uma regra ou ordem, um edital de concurso, etc.
As pesquisadoras da Universidade Estadual de São Paulo, na cidade de Ribeirão Preto-SP, Lucília Romão e Soraya Pacífico, escreveram um livro bastante importante para tratarem de leitura e escrita na sala da aula, intitulado Era uma vez uma outra história: leitura e interpretação na sala de aula. Para este momento, vamos atentar às discussões sobre leitura, sujeito e sentido e as estratégias discursivas para a produção dos sentidos, a fim de que você perceba que a leitura e a interpretação não dependem somente da estrutura do texto, mas de fatores externos a ele e que afetam na produção dos sentidos.
Romão e Pacífico (2006) afirmam que a leitura é comumente considerada a partir das concepções de decodificação, prazer, criação e atribuição de sentidos ao texto e que, nas práticas escolares, há uma preocupação em não banalizar o uso da leitura, mas isso fica apenas em propostas e projetos, seja pela dificuldade que os professores encontram, seja pelo despreparo teórico. Para elas, a prática de leitura que impera nas salas de aula é uma prática de repetição de sentidos, de memorização, sem espaço para a busca do sentido outro; assim, os sentidos são, ao mesmo tempo, controlados e autorizados, a partir da leitura como pretexto para outras atividades, uma prática parafrástica, que não contribui para que o arquivo do aluno (e do professor) seja expandido.
Essas críticas expostas pelas autoras nos fazem pensar nas práticas de leitura, escrita e oralidade que podemos desenvolver na escola. Como você pode elaborar práticas pedagógicas que levem em conta a pluralidade de sentidos, as rupturas e os deslocamentos?
Uma das vastas possibilidades de trabalho com o texto é trazer para o âmbito escolar a multiplicidade de textos que aparecem na mídia, os quais também trazem uma multiplicidade de leitores, textos jornalísticos, literatura popular, memes, etc.
Lemos os mais variados textos: os escritos, as músicas, as imagens, as esculturas, as pessoas e o mundo – como diz a clássica frase de Paulo Freire: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1989, p. 9). A leitura está em toda sociedade e afeta tanto os que sabem ler convencionalmente em uma língua quanto os que ainda não se apropriaram da linguagem escrita. Logo, estamos exercendo a leitura a todo momento. Leitura de textos multissemióticos, que apresentam com palavras, imagens, gráficos, sons, etc.
Chartier (1998, p. 77) retoma Certeau para dizer que “o leitor é um caçador que percorre terras alheias.” Ele acrescenta, ainda, que a leitura é apropriação, invenção, produção de sentidos – repare que essa afirmação condiz com o que apresentamos anteriormente sobre a leitura enquanto produção –, e que, a partir do momento em que o leitor se apropria do texto, este se desprende do sentido que o autor lhe atribuiu. Podemos dizer que o leitor passa a ser o “dono” do texto, pelo menos dos sentidos dele, tal qual fizemos com o poema de João Cabral de Melo Neto, Catar feijão, a partir do qual percorremos terras alheias, nos apropriando da escrita dele para produzir os nossos sentidos.
Exemplificando
A escrita afeta a todos nós, os que escrevem e os que não são alfabetizados: está nos documentos, nos ônibus, no receituário médico, nos rótulos dos produtos, estampada nas roupas, nas telas dos celulares, etc.
Ler textos impressos provoca gestos de interpretação diferentes de ler textos na tela do computador. O fato de estarem circulando em espaços distintos provocam leituras e sentidos diferentes. A leitura que antecede afeta o modo como lemos determinado texto. Se pensarmos pelo digital, o caminho que nos levou a chegar a determinado texto afeta a interpretação que construímos: foi um link indicado em uma página? Uma indicação de um amigo pelo WhatsApp? Um compartilhamento no Facebook? Esses caminhos afetarão no modo como lemos.
Diante dessa reflexão, o cuidado com a interpretação precisa ser tomado e você precisa atentar que “a liberdade leitora não é jamais absoluta” (CHARTIER, 1998, p. 77), mas apresenta limitações originadas da capacidade, das convenções e dos hábitos, pelas diferentes práticas de leitura. O autor diz ainda que as mudanças de atitude que acontecem ao longo do tempo e dos suportes de leitura, como o rolo antigo, o códex medieval, o livro impresso e o texto eletrônico, mudam os gestos de leitura.
Todas essas colocações são subsídios para o trabalho com a leitura em sala de aula e são imprescindíveis para que você considere a leitura como construção de sentidos. Vamos finalizar com as colocações de Orlandi (2001), que afirma: não é no texto em si que estão as múltiplas possibilidades de leitura, mas no entremeio, em que jogam os diferentes gestos de interpretação. Segundo a autora, há muitas versões de leituras possíveis a partir de um texto, há diferentes leituras que não se alternam, mas coexistem, assim como coexistem as diferentes formulações do texto escrito e dos textos orais.
Foco na BNCC
A BNCC (BRASIL, 2017) diz que a escola precisa pautar suas atividades de escrita no desenvolvimento da habilidade de identificar a função social dos textos, tanto em práticas cotidianas quanto nas mídias impressas e digitais, questionando seus interlocutores, sua produção e sua circulação.
Desenvolver estratégias de planejamento, revisão, edição, reescrita/redesign e avaliação de textos, considerando-se sua adequação aos contextos em que foram produzidos, ao modo (escrito ou oral; imagem estática ou em movimento etc.), à variedade linguística e/ou semioses apropriadas a esse contexto, os enunciadores envolvidos, o gênero, o suporte, a esfera/campo de circulação, adequação à norma-padrão etc.
Utilizar softwares de edição de texto, de imagem e de áudio para editar textos produzidos em várias mídias, explorando os recursos multimídias disponíveis. (BRASIL, 2017, p. 78)
Chegamos ao final de mais uma unidade. Você expandiu os seus conhecimentos acerca da oralidade, retomou conceitos de oralidade, entendeu quais são os elementos constituintes dos textos orais e refletiu acerca da oralidade, da escrita e da leitura enquanto práticas sociais.
Faça valer a pena
Questão 1
A escrita seria um modo de produção textual-discursiva para fins comunicativos com certas especificidades materiais e se caracterizaria por sua constituição gráfica, embora envolva também recursos de ordem pictórica e outros (situa-se no plano dos letramentos). Pode manifestar-se, do ponto de vista de sua tecnologia, por unidades alfabéticas (escrita alfabética), ideogramas (escrita ideográfica) ou unidades iconográficas, sendo que no geral não temos uma dessas escritas puras. Trata-se de uma modalidade de uso da língua complementar à fala. (MARCUSCHI, 2010, p. 26)
Tomando como referência a relação entre escrita e oralidade propostas por Marcuschi, julgue as afirmativas a seguir como verdadeiras (V) ou falsas (F):
( ) Uma das diferenças que podemos observar da escrita para a oralidade é o suporte material.
( ) A escrita permite a criação de textos multissemióticos, o que não é possível na oralidade.
( ) As tecnologias servem mais ao ato de escrita do que à prática da oralidade.
( ) As atividades de redação na escola são insuficientes para se desenvolver a competência textual dos alunos.
Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
Esta alternativa está incorreta. Leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar novamente.
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Esta alternativa está incorreta. Leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar novamente.
Correto!
A escrita permite a criação de textos multissemióticos. Sabemos disso porque podemos incluir imagens, gráficos, figuras, símbolos, etc. na escrita, mas essa não é uma característica exclusiva da escrita, já que serve também para a oralidade. Na oralidade, podemos incluir outros elementos que configuram a multissemiose em nossos textos, como a apresentação de imagens, a inclusão de músicas e outras manifestações gestuais.
As tecnologias existem desde os tempos mais remotos. O pergaminho e o papiro eram tecnologias, assim como o caderno e a lousa também são. Para a oralidade, temos as tecnologias mais diversas, como a radiofrequência, o telefone e os aplicativos de áudio e vídeos. Sendo assim, as tecnologias servem a todas as manifestações de linguagem, sejam elas escritas ou orais.
Esta alternativa está incorreta. Leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar novamente.
Questão 2
A escrita pressupõe um trabalho sobre a linguagem. É aí que a escola exerce um papel fundamental, o de contribuir para o desenvolvimento da competência textual dos alunos durante todo o processo de escrita.
Com base nas discussões acerca da importância da correção e reescrita do texto, avalie as seguintes asserções e a relação proposta entre elas:
I. “Não hesite em reestruturar ideias e reorganizar seu texto, mesmo que sua redação, a seu ver, seja ‘quase uma obra de arte’. Peça a colegas e professores para lerem seu texto antes de dá-lo por terminado. Críticas poderão contribuir para a melhoria do manuscrito.” (MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010, p. 22).
PORQUE
II. “A palavra-chave para a qualidade de qualquer texto é a ‘revisão’ a cada versão do texto e, de modo especial, da versão final. É fundamental que você aprenda a ler o seu próprio texto com distanciamento e espírito crítico.” (MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010, p. 22).
A respeito dessas asserções, assinale a alternativa correta:
Correto!
Um dos pontos de destaque nesta seção foi a importância da reescrita do texto e das correções da versão final daquilo que escrevemos. Considerando essa afirmação, podemos dizer que a asserção I fortalece a ideia de que a releitura do texto, para fins de correção e reelaboração, é indispensável em qualquer circunstância, inclusive naquela que achamos que o texto está perfeito. Portanto, revisar um texto é resultado de se considerar a importância da reelaboração dele, mesmo após “acabado”.
Esta alternativa está incorreta. Leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar novamente.
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Questão 3
Talvez a descoberta de que se trata de um trabalho árduo (e não um ‘momento mágico’) acabe por afastar muitos dos que se propõem a escrever. No entanto, não se pode negar que a escrita, com as novas tecnologias digitais, vem sendo praticada por um número maior de pessoas. Há autores que chegam a afirmar que essas tecnologias possibilitaram a ‘radicalização do uso da escrita’. Mas é bom lembrar que o contexto da mídia eletrônica só permite a produção de textos em determinados gêneros, como o e-mail, o chat, o blog, com sua circulação restrita a esse meio. Cabe questionar se os usuários da rede como um todo têm condições de produzir textos em gêneros mais formais, que demandem outro tipo de elaboração.
Considerando o texto, avalie as seguintes afirmativas:
- Há determinados suportes de textos que merecem um julgamento de valor mais positivo, como os livros.
- Além de pensarmos nos diferentes suportes de textos, é preciso considerar a democratização da escrita.
- Há restrições em relação ao uso de determinados textos ou à dificuldade por causa da pouca familiaridade com o texto escrito.
- As tecnologias produzem uma escrita mais informal e, por isso, os seus textos devem ser utilizados com cautela na escola.
- A escrita realizada nas mídias eletrônicas não pode ser considerada escrita, na perspectiva da escola.
Considerando o contexto apresentado, assinale a alternativa correta:
Esta alternativa está incorreta. Leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar novamente.
Correto!
A afirmativa I está incorreta, porque considera o livro como um suporte de texto superior aos demais. Os portadores de texto que circulam em nosso cotidiano vão aparecendo, se reestruturando e caindo em desuso a partir das necessidades dos usuários desses textos em uma determinada sociedade. Sabemos da importância de se ler um livro, mas isso não descarta a importância da leitura de jornais, revistas, blogs, etc.
A afirmativa IV traz uma inverdade em relação à escrita pelas tecnologias. Mesmo nas tecnologias, temos as variedades formais e informais, os jornais on-line são um exemplo disso, assim como as aulas e os cursos on-line. Seu uso deve ser presente na escola, inclusive para reflexão das adequações linguísticas, considerando os interlocutores, os objetivos, o tema e o lugar de circulação digital.
A afirmativa V é incoerente com o que estudamos nesta seção. A escrita pressupõe muitas formas e variedades, e as utilizadas nas mídias eletrônicas são escritas.
Esta alternativa está incorreta. Leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar novamente.
Esta alternativa está incorreta. Leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar novamente.
Esta alternativa está incorreta. Leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar novamente.
referências
BENVENISTE, É. Estrutura da língua e estrutura da sociedade. In: BENVENISTE, É. Problemas de Linguística Geral II. Trad. Eduardo Guimarães et al. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, 2006. p. 93-104.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2017. Disponível em: https://bit.ly/3bdQR2Z. Acesso em: 24 abr. 2020.
CASTILHO, A. T. de. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 2016. (Coleção Repensando o ensino).
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